Assassinado Delmiro Gouveia, o Pioneiro de Paulo Afonso
Tadeu Rocha (*)
Está fazendo 60 anos que se cometeu um dos mais hediondos crimes da História do Nordeste: a traiçoeira morte de Delmiro Gouveia, o Pioneiro de Paulo Afonso. Pioneiro não só na conservação da força dessa cachoeira em energia elétrica, mas também do alto comércio de peles de bode e carneiro, da pecuária moderna, da palma forrageira, do zebuamento bovino, da água encanada, da grande indústria, da máquina de escrever, da vila operária, da assistência social, das estradas de rodagem, do automóvel, do gelo, do cinema, da patinação e do futebol no sertão nordestino.
CRIME TRAIÇOEIRO EM NOITE DE VERÃO
No ano de 1917, Delmiro Gouveia não estava morando na casa-grande da Fábrica da Pedra. Ele residia, então, num elegante chalé, que o dentista Aloísio Cravo mandara construir no largo fronteiro à Fábrica, porém fora da cerca de arame do grande núcleo industrial. Terminada a faina do dia 10 de outubro, uma quente quarta-feira de verão, o Pioneiro recolheu-se ao chalé, onde jantou em companhia do seu compadre Firmino Rodrigues, com quem foi palestrar no alpendre lateral esquerdo da residência. Depois que seu compadre se estirou, Delmiro passou a ler jornais, sentado em uma cadeira de balanço, à luz de forte lâmpada elétrica.
Eram oito e meia da noite, quando três tiros de rifles ecoaram por toda a vila industrial da Pedra. Os tiros foram deflagrados de um corte ferroviário próximo ao chalé. José Alexandre Cordeiro (o jovem Zé Pó), que pouco antes servira o jantar ao Coronel Delmiro e seu convidado, foi encontrar o patrão gravemente ferido, agarrando-se nas cadeiras do alpendre. Muita gente acorreu á residência do chefe, que foi conduzido a seu leito.
Gravemente ferido, Delmiro ainda recebeu socorros do médico da Fábrica da Pedra, Dr. José Maciel Pereira. Dos três tiros deflagrados, duas balas o atingiram, sendo que uma lhe varou o coração. Poucos minutos teve de vida aquele homem de belo porte e grande resistência física e moral. Nos últimos alentos da existência terrena, Delmiro Gouveia fez a mais cristã das súplicas, e a mais nordestina das preces: “Valha-me Nossa Senhora!” Às 20 horas e 40 minutos, rendeu sua alma ao Criador. Estes preciosos informes nos foram dados, em fevereiro de 1953, pelo referido José Alexandre Cordeiro, fiel empregado doméstico de Delmiro Gouveia, desde 1903 até a morte do seu patrão, na trágica noite de 10 de outubro de 1917.
INVEJA E DESPEITO GERARAM A TRAGÉDIA
O grande comércio de peles de caprinos e ovinos, uma pecuária modernizada e a montagem da fábrica de linhas, com a extraordinária façanha do aproveitamento da cachoeira de Paulo Afonso, transformaram Delmiro Gouveia na maior autoridade social dos sertões nordestinos. O novo Coronel, emigrado do alto comércio recifense, tinha enorme prestígio econômico da região e prestígio político no Estado de Alagoas, o qual também se estendeu a Pernambuco, quando, o General Dantas Barreto, “derrubou” a oligarquia do Conselheiro Rosa e Silva. Para o povo em geral, o Pioneiro, de Paulo Afonso era um verdadeiro herói, por ter domado a famosa cachoeira do S. Francisco.
A inveja e o despeito não tardaram em criar duas sérias inimizades ao moderno sertanista. Interesses políticos e econômicos contrariados tornaram o Cel. José Gomes de Lima e Sá, residente em Jatobá, hoje Petrolandia, um inimigo rancoroso de Delmiro. Na outra extremidade da Estrada de Ferro Paulo Afonso, em Piranhas, o Cel. José Rodrigues de Lima, parente do primeiro, também se desentendeu com Delmiro , por questões de terras. O ódio dos dois parentes armou sicários que, nas caladas da noite, abateram traiçoeiramente, em sua casa, a mais importante figura da moderna História Econômica do Nordeste.
Nos dois processos instaurados na Comarca alagoana de Água Branca, apareceram como mandantes do hediondo crime os Coronéis José Rodrigues de Lima e José Gomes de Lima e Sá. O Coronel José Rodrigues acobertou-se com as “imunidades” de chefe político do Município de Piranhas, as quais logo se converteram em imunidades parlamentares, do deputado Estadual. Por isso, ele nem chegou a ser denunciado pela Promotoria Pública daquela Comarca. Em conseqüência de oura inimizade, foi assassinado em Maceió, a 28 de agosto de 1927.
Quando o Cel. José Gomes foi denunciado e pronunciado em Água Branca, mas se refugiou no interior do Goiás, onde nunca chegou a ser incomodado pela Justiça de Alagoas. Decorridos muitos anos, já em 1936, foi assassinado na cidade de goiana de Peixe, por questões de família. O certo, porém, é que o crime mandado praticar por esses dois atrasados Coronéis sertanejos, não atingiu apenas o genial Delmiro Gouveia: a bala, que lhe varou o coração, também, atingiu o próprio coração do Nordeste, onde o Pioneiro de Paulo Afonso fizera brotar a nova civilização industrial.
A confusão que se seguiu a morte violenta do Pioneiro de Paulo Afonso, na vila industrial de Pedra, foi indescritível. A inconcebível realidade foi por demais chocante e as diversas patrulhas, que logo se organizaram para capturar os executores do nefando crime, não surtiram qualquer efeito. Fervilhavam os boatos e multiplicavam-se as insinuações sobre a autoria material do crime, até que as hipóteses recaíram nos derradeiros ausentes do núcleo industrial. Entre estes, estavam os operários José Inácio Pia, que fora despedido da fábrica de linhas, e seu compadre Róseo Morais do nascimento, que pedira suas contas.
Na casa da Ruía Rui Barbosa, na vila operária da Pedra, onde haviam residido Róseo, que era solteiro, e José Inácio Pia, casado, somente permaneciam a esposa e sogra deste último. E logo no dia 14 de outubro, ao que consta dos autos do Processo Delmiro, surgiram as primeiras acusações a esses derradeiros ausentes. Não foi difícil à Polícia Militar de Alagoas capturar os supostos assassinos de Delmiro, permitindo ao Governo do Estado justificar-se perante a opinião pública do Nordeste e de todo o Brasil.
José Inácio Pia, apelidado de Jacaré, foi preso no dia 7 de novembro, em Própria, onde estava em transito, de volta á Pedra, para ir buscar sua mulher. Naquela cidade, ele fora protestar sua inocência no quartel da Polícia sergipana, onde se abrigou. Quanto ao seu compadre Róseo, Jacaré informou que ele estava trabalhando na usina Pedras, no Município de Maruim, onde foi preso a 10 de novembro. Noutro inquérito, feito um ano mais tarde, apareceu Antonio Felix do Nascimento como terceiro mandatário do crime de 10 de outubro de 1917.
À custa de violência de toda espécie, que iam do pistolamento às constantes ameaças de fuzilamento, o famigerado Capitão Nolasco obteve de Jacaré e Róseo a “confissão” da autoria do crime... O mesmo processo foi utilizado em relação ao pernambucano Antônio Felix do Nascimento, que não tinha qualquer parentesco com o cearense Róseo Morais do Nascimento. Denunciados e pronunciados, esses três humildes sertanejos foram submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri de Água Branca, em 22 de agosto de 1919, que os condenou à pena de 30 manos, confirmada por um segundo julgamento, realizado e, 9 de fevereiro de 1922.
ERRO JUDICIÁRIO
Após 22 anos de pesquisas sobre a vida e a obra de Delmiro Gouveia e dois anos e meio depois do lançamento da terceira edição do nosso ensaio sobre o Pioneiro de Paulo Afonso, chegamos à conclusão de que Róseo Morais do nascimento e José Inácio Pia (vulgo Jacaré) foram vítimas de erro judiciário no Processo Delmiro.
Na última semana de setembro de 1917, eles pegaram o trem, na estação da Pedra, e foram até Piranhas, onde embarcaram para Própria, logo nos primeiros dias de outubro. Desceram em S. Francisco na canoa Pirapora, em que também viajavam o industrial Manoel de Souza Brito e o cabo José Marinho de Melo Morais, do destacamento de Piranhas. Róseo e Jacaré pediram emprego ao Cel. Neco Brito, que lhes ofereceu colocação em sai fábrica de tecidos, de Própria. Na terça-feira, 9 de outubro, foram despedir-se do industrial e dizer-lhe que não aceitavam o emprego. Por serem baios os salários.
Na quarta-feira, dia 10, tomaram o trem da Própria a Aracaju, o qual pernoitou em Japaratubinha, hoje Muribeca, por motivo de avaria. No dia seguinte, o trem se arrastou até a estação mais próxima, que era o entroncamento ferroviário de Murta, onde se iniciava o ramal de Capela. Ali na estação de Murta foi, então, que souberam da morte de Delmiro, transmitida pelos passageiros do trem da quinta-feira, saído de Propriá. Róseo e jacaré desceram na estação de Maruim, dirigindo-se à usina Pedras onde se empregaram como pedreiros.
Cerca de um mês depois, quando Jacaré voltou a Propriá, com destino à vila operária da Pedra (para ir buscar sua mulher), soube que ele e Róseo estavam sendo apontados como matadores de Delmiro. Nova,ente procurou o Cel. Neco Brito, em sua própria residência. A seu pedido, o Cel. Manuel de Souza Brito passou um telegrama ao Coronel Ulisses Luna, de Água Branca, informando que Jacaré e Róseo não poderiam ser os assassinos de Delmiro Gouveia, pois na véspera do dia 10 de outubro eles estavam em Propriá. Esse telegrama foi ditado pelo Cel. Neco Brito a sua filha Maria Etelvina (a jovem Lili), que o escreveu, e foi recebido pelo Cel. Ulisses Luna, quer o mandou entregar às autoridades encarregadas do inquérito policial, às quais lhe deram destino ignorado. Tão decisivo documento não consta do Processo Delmiro, ao que verificamos no cuidadoso exame dos seus dois volumes.
Em nossa longa e continuada pesquisa sobre a vida e a obra de Delmiro Gouveia (que iniciamos em janeiro de 1950 e ainda não demos por terminada), nenhum elemento conseguimos a respeito da inocência de Antônio Felix do Nascimento, o suposto terceiro mandatário do crime. No sertão do submédio S. Francisco, em Alagoas e Pernambuco, muita gente afirma que ele também “confessou” o crime à custa de grandes torturas, por parte das autoridades policiais alagoanas. Já nos meados de 1953, soubemos que se falava em Água Branca ter sido um dos assassinos de Delmiro o agricultor Herculano Soares Vilela, que tempos antes tivera um sério atrito com o Pioneiro, numa rua daquela cidade. Somente na década de 60 foi que o Sr. Cícero Torres, então Deputado Estadual e hoje Conselheiro aposentado do Tribunal de Contas de Alagoas, fez declarações públicas sobre a culpabilidade de Herculano Vilela na morte de Delmiro. Posteriormente, o Sr. Cícero Torres, neto dobarão de Água Branca, reafirmou essas declarações, em inquérito judicial. Depondo na mesma inquirição, o venerando Sr. José Correia de Figueiredo, genro do Coronel Ulisses Luna, declarou “que era voz corrente em Água Branca que a autoria material do crime cabia a Herculano Soares e seu cunhado Luiz dos Angicos, e Manuel Vaqueiro”. Também se diz em Água Branca, que Herculano Soares Vilela, na hora da morte, revelou o segredo a seus familiares, que se negam a dar testemunho dessa importante confissão.
(*) Advogado, Escritor e Jornalista nascido em Santana do Ipanema (AL).
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