quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O Desafio de Delmiro

Recife, 13 de abril de 1980

Há 50 anos uma multinacional destruía o sonho de um nacionalista nordestino


Tadeu Rocha (*)


Na hora exata em que a classe médica de todo o Brasil faz cerrada campanha contra o domínio de empresas estrangeiras na indústria farmacêutica e também contra a recente invasão das multinacionais no setor da assistência médica em nosso país, temos o dever de registrar um doloroso cinqüentenário: a execução da sentença de morte contra a Fábrica Pedra, por uma poderosa multinacional, que comprou e quebrou a marretadas as máquinas de fabricar linhas, da indústria pioneira que Delmiro Gouveia fizera brotar no sertão alagoano.

A sentença de morte contra a linha “Estrela” fora baixada no Dia de Finados de 1929, em Paisley, na Escócia, através de um “acordo” leonino, entre a Machine Cottons, (representada pelos seus principais J. & P. Coats & Co. Ltd) e a Cia. Agro Fabril Mercantil, que não mais suportava a terrível concorrência da Machine, feita coma indiferença de uns e a conivência de outros políticos brasileiros, membros do Poder Executivo ou do Congresso Nacional.
A clausula 4ª do “acordo” de 2 de novembro de 1929 determinava textualmente: “Pedra cessará a fabricação de linhas de coser dentro de noventa dias da confirmação do acordo por Machine”. Lá em Santana do Ipanema, a notícia da morte da linha “Estrela” chegou nos começos de dezembro dói mesmo ano, porém a matutada do vale seco do Ipanema não acreditava nessa “conversa”. Os pequenos criadores e agricultores das redondezas perguntavam, então, aos rapazes mais “sabidos” da cidade – seu Guadimar (Valdemar de Souza Lima), seu Fernande (Fernando Nepomuceno), seu Gidinho (Atanagildo Brandão), seu Pêdo (Pedro Bulhões), e prufessô Zezinho (José Limeira Filho) – se essa história era “mesmo de vera”. Os matutos ficavam, espantados com a resposta afirmativa dos líderes intelectuais do movimentado centro urbano do sertão de Alagoas.
A execução da parte final da sentença de morte contra a Fábrica de Pedra realizou-se no decorrer de abril de 1930, quando a Machine Cottons mandou quebrar os maquinismos destinados ao fabrico de linhas, seu encarretelamento, enovelamento e dobramento em meadas ou enrolamento em tubos.
Para que não ficasse memória da pioneiríssima indústria de linhas, a multinacional mandou jogar os esqueletos de ferro daqueles maquinismos no talhadão do rio S. Francisco, logo a jusante da cachoeira de Paulo Afonso. Tão violento crime e tão singular sepultamento foram testemunhados por muitos habitantes do populoso núcleo industrial da Pedra, inclusive o então jovem Abdon Wanderley Marques, que nos reafirmou , há poucos dias, um antigo e minucioso informe sobre essa tragédia econômica, de repercussão social.

FÁBRICA DE PEDRA

Perseguido pela polícia e pela Justiça de Pernambuco, o alto negociante Delmiro Gouveia saiu do recife em outubro de 1902, refugiando-se na cidade de Água Branca, na zona sertaneja de Alagoas. Logo em janeiro de 1903, ele foi fizera-se junto à desconhecida estação de Pedra, na Estrada de Ferro Paulo Afonso, a quatro léguas da famosa cachoeira do mesmo nome. Ali se fez fazendeiro moderno e reiniciou o seu velho negócio de “courinhos” (peles de bode e carneiro).
Delmiro já havia refeito sua fortuna, com o alto comércio de “courinhos”, quando teve a idéia genial de aproveitar a força da cachoeira de Paulo Afonso, num empreendimento progressivo, que iria de uma pequena usina hidrelétrica até poderosas instalações para o fornecimento de luz e força a muitas áreas nordestinas. Para isso, por escritura de 11 de agosto de 1910, comprou a Fazenda Cachoeira de Paulo Afonso. E nos meados de 1912, construiu a Cia. Agro Fabril Mercantil, destinada a assumir as enormes responsabilidades desses vastos empreendimentos.
Com a orientação de engenheiros europeus e o trabalho braçal de antigos vaqueiros e roceiros, o “coronel Delmiro” fez construir uma usina hidrelétrica de 1250 KVA, que foi inaugurada no dia 26 de janeiro de 1913, dotando de luz elétrica e água encanada o núcleo industrial da Pedra, em construção: a fábrica de linhas e sai vila operária. E a 6 de junho de 1914, foi inaugurada a pioneira Fábrica de Pedra, como ficou sendo chamada em todo o Nordeste.

HERANÇA E VENDAGEM

Delmiro Gouveia que se tornara a maior autoridade social no sertão nordestino, foi traiçoeiramente assassinado na noite de 10 de outubro de 1917. Como vimos escrevendo aqui no DIÁRIO, desde julho de 1953, antes que o capitalismo Internacional precisasse matar Delmiro, o “coronelismo” sertanejo o eliminou. Apesar o desaparecimento inesperado do Pioneiro de Paulo Afonso, a Fábrica da Pedra prosseguiu trabalhando, sob a orientação de Lionello Iona, velho colaborador de Delmiro, permanecendo o “capitão” Adolfo Santos na gerência da fábrica e demais negócios da Cia. Agro fabril mercantil, no núcleo industrial da Pedra.
Os negócios da Agro Fabril Mercantil prosperaram até o exercício de 1923, quando ainda foi distribuído o dividendo de 10%. A partir do ano seguinte, a Machine Cottons aumentou a concorrência á industria nacional de linhas, exclusivamente representada pela Fábrica da Pedra. No relatório que a diretoria da empresa brasileira apresentou a assembléia geral dos acionistas, em 15 de abril de 1925, há uma referência expressa a desleal competição estrangeira, citando-se “a forte pressão do concorrente, que desenvolveu forte campanha contra a nossa Fábrica no ano findo”. A essa crise comercial seguiu-se uma grande modificação na administração da empresa, coma maioridade dos três filhos de Delmiro Gouveia: Lionello Iona foi afastado da Agro Fabril Mercantil, em 1925, e em fevereiro de 1927 Adolfo Santos renunciou à gerência da Fábrica da Pedra, que vinha exercendo desde a sua fundação. No seu “Depoimento” , ele esclarece que o fez “por incompatibilidade de caráter e por motivos de irregularidades e deficiências no movimento financeiro da Fábrica”.
Por intermédio do Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão e com o apoio da imprensa carioca, os herdeiros de Delmiro Gouveia ainda conseguiram que o Congresso Nacional incluísse na lei que orçou a receita da República para o exercício de 1926 uma autorização ao Poder Executivo, a fim de restringir ou mesmo proibir a importação de qualquer produto estrangeiro, ao verificar que os fabricantes, representantes ou importadores desse produto, concedendo vantagens especiais aos comerciantes que se comprometiam a não vender o similar nacional, procuravam embaraçar ou prejudicar a venda do artigo brasileiro. E o então presidente Artur Bernardes baixou o Decreto nº 17383, de 19 de julho de 1926, elevando a taxa de importação sobre a linha de coser, de dois para dez mil réis por quilo. Este ato foi referendado pelo sergipano Aníbal Freire da Fonseca, Ministro da Fazenda, e pelo baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida, Ministro da Agricultura.
O Presidente Artur Bernardes ainda prometera aos principais acionistas da Fábrica da Pedra, que lhe haviam exposto a situação precária a que chegara o estabelecimento em princípios de 1926, um empréstimo de 3000 mil contos de réis, por intermédio do Banco do Brasil. As modificações nos quadros políticos-administrativos da República, em 15 de novembro desse ano, impediram a efetivação do empréstimo. Os herdeiros do fundador da Agro Fabril já estavam sem recursos par o financiamento dos diversos setores da sua indústria e resolveram desfazer-se das ações, que foram adquiridas pela empresa pernambucana Menezes Irmãos & CIa., por escritura de 7 de maio de 1927. Aos industriais Luis e Vicente Lacerda de Menezes, filhos do engenheiro Carlos Alberto, coube então dirigir a Cia. Agro Fabril Mercantil na mais difícil conjuntura por que passou a Fábrica da Pedra.

RESTAURAÇÃO INDUSTRIAL

As primeiras preocupações dos novos orientadores da empresa fora de caráter administrativo e econômico, restabelecer o funcionamento da fábrica de linhas e reorganizar os negócios da sociedade. Na assembléia geral extraordinária de 25 de julho de 1927, foram reformados os seus estatutos, aumentando o capital de 3000 para 6000 contos de réis e autorizado o empréstimo de mais de 5000 em obrigações preferenciais. Os prejuízos com que se fecharam muitas contas de exercícios anteriores produziram no balanço desse ano um “déficit” de 1.275 contos de réis. Convém notar que ainda em 1927 foram restabelecidos os serviços de assistência médica, o Tiro de Guerra, a banda de música, as sessões gratuitas de cinema e as festas familiares no cassino de diversões. Deu-se, também, início a construção de um Grupo Escolar, com capacidade para 400 alunos.
Assenhoreando-se do problema das linhas de coser, os irmãos Menezes, que eram industriais de fiação e tecelagem, logo perceberam a necessidade de melhorar e aumentar a produção da Fábrica da Pedra e ampliar as instalações hidrelétricas da companhia. Com o saldo dos 5.000 contos de réis do empréstimo contraído no ano anterior, o sr. Luis Lacerda de Menezes foi adquirir na Inglaterra, em começos de 1928, novos maquinismos para a fábrica de linhas, a fim de triplicar a sua produção. Nesse mesmo exercício administrativo, foram recompostos os canais de adução da antiga usina de Paulo Afonso e modificado o projeto das novas instalações da Furna dos Morcegos para a produção de mais 2500 H.P. No setor social da Pedra, concluiu-se a construção do edifício do Grupo Escolar, na vila operária.

CONCORRÊNCIA E ASFIXIA

Nos considerandos do decreto federal que, nos meados de 1926, elevou a taxa de importação sobre linhas de coser está perfeitamente demonstrada a terrível concorrência dos produtores estrangeiros contra a única fábrica brasileira de linhas. Depois de acentuar que industriais estrangeiros estavam prodigalizando vantagens especiais a comerciantes que se comprometiam ma não vender os produtos da Fábrica da Pedra, o Decreto nº 17383, de 19 de julho de 1926, esclarece que dos documentos apresentados pela Agro Fabril se evidenciava “o propósito dos fabricantes estrangeiros de extinguir o mercado, estabelecerem preços exorbitantes para os seus produtos”. E o texto legal ainda refere que os preços de venda desses produtos, nos próprios paises de origem, eram mais elevados que os vigorantes no Brasil, não obstante as despesas aditivas de fretes, seguros e impostos.
As tarifas protecionistas de 1926 foram dois anos depois, revogadas pelo Sr. Washington Luiz, apesar dos esforços envidados em favor da linha nacional pelos Governadores alagoanos Costa Rego e Álvaro Pais. Este último não só conseguiu que p então Presidente da República recebesse em audiência o sr. Luiz Lacerda de Menezes, como ainda o acompanhou ao catete, apoiando as justas pretensões do industrial nordestino, que eram outros tantos direitos da industria nacional. Nada, porém, conseguiu o diretor da Fábrica da Pedra, mesmo contando ao Presidente da República toda a história, aliás curta e trágica, da linha brasileira e frisando a impossibilidade de continuar o fabrico “sem o amparo que o Presidente Artur Bernardes lhe dera e que o Presidente Washington Luis revogara”. E a linha estrangeira continuou sendo importada com a tarifa de dois mil reis por quilo... Com muita dificuldade, o Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão obteve que a Lei nº 5.650, de 9 de janeiro de 1929, ao retomar as tarifas alfandegárias, não reduzisse a taxe de importação da linha para menos de quatro mil réis, pois o senador Paulo de Frontin quebrou lanças pela permanência da antiga tarifa de dois mil réis.
A miopia econômica financeira do chefe do Executivo Federal e da maioria das duas casas do Congresso determinou o colapso da indústria brasileira de linhas, ainda no mesmo ano de 1929. Nesse exercício, a Agro Fabril teve grandes prejuízos, dada a crise porque passava o país e a intensificação da concorrência da Machine Cottons, fortemente apoiada nas defeituosas Leis brasileiras. A empresa nacional procurou contornar as dificuldades, aceitando entrar em negociações com a concorrente. “No curso destas negociações, todas as formas de compromisso para trabalhar por conta da Machine Cottons ou para restringir a produção da Pedra a determinados limites, mediante clausulas de uma concorrência ajustada, sem nenhum proveito, resultando finalmente uma oferta firme de Machine Cottons, por seus principais J. & P. Coats, Ltda., de Paisley, para a Fábrica da Pedra cessar a fabricação de linhas de coser e entregar, por venda, os maquinismos exclusivamente destinados a esta fabricação”.

AO TOQUE DE FINADOS

Diante do abandono em que os Poderes Públicos federais deixaram a nossa indústria de linhas, a Fábrica da Pedra viu-se obrigada a fugir do campo de batalha, assinando em Paisley, na Escócia, um acordo com os representantes da Machine. Foi no dia 2 de novembro de 1929. Nas clausulas do ajustes, estabeleceu-se que a empresa estrangeira compraria o negócio, a indústria e as marcas da Fábrica da Pedra por 27.000 libras esterlinas, obrigando-se a Agro Fabril vender-lhe, também, os maquinismos e acessórios para a fabricação de linhas, base de 50% do preço FOB porto inglês e mais 15% para os acessórios.
A Machine ainda se comprometeu a pagar 5.000 libras pelas despesas que a empresa brasileira teria para transformar sua fábrica de linhas em manufatura de tecidos. Num dos itens do acordo, o truste britânico exigiu mandar à Pedra um inspetor, a fim de examinar os maquinismos que seriam utilizados, superintender sua utilização, verificar os estoques de fios em todas as fases de preparo e observar se todas as máquinas de fazer linhas estavam incluídas na vendagem. A Agro Fabril e a firma Menezes Irmãos & Cia., comprometeram-se por dez anos, e os industriais Luiz e Vicente Lacerda de Menezes por cinco, a não reentrarem no negócio de linhas, nem a venderem fios para a sua fabricação.
Ao som do toque de Finados, do ano da graça de 1929, no centro industrial de Paisley, na Escócia, ficou selado o destino da única indústria nordestina e brasileira de linhas. Três semanas após, exatamente a 23 de novembro, nesta cidade do recife, o Conselho Fiscal da Agro Fabril, em reunião conjunta coma Diretoria da empresa, deu parecer favorável à aceitação do acordo com a Machine Cottons. E em data de 9 de dezembro seguinte, a assembléia geral da sociedade fundada pro Delmiro Gouveia homologou o ajuste. Seguiu-se a inevitável execução, na Fábrica da Pedra, com a destruição de muitos maquinismos, a marretadas.
E o lúgubre ranger dos ferros que, em abril de 1930, se propagou para l[em dos muros da Fábrica da Pedra. Foram os derradeiros estertores da indústria nacional de linhas. O relatório da Cia. Agro Fabril Mercantil, referente àquele ano, após esclarecer mais uma vez que a empresa aceitara as condições impostas pela Machine Cottons, “depois de frustrados todos os esforços junto ao Governo Federal para melhor amparo à indústria de linha nacional” noticia melancolicamente o desaparecimento da linha “Estrela”: Executamos fielmente aquele ajuste.


(*) Advogado, escritor e jornalista.

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