Ernani Otacílio Mero (*)
Era o dia 25 de setembro último, quando às 14 horas tocou o telefone. Fui atender. O amigo, Dr. Pedro Onofre, Diretor da FUNTED, perguntava se aceitaria proferir uma conferência sobre Delmiro Gouveia. Era um desafio. Logo, me vieram à mente fatos de família. O ilustre cidadão era hóspede de meu avô materno, Cel. João Otacílio de Azevedo e Silva, em Penedo. Dizia-me o meu tio João Otacílio que o ilustre visitante era um homem elegante, simpático, sempre trajando branco e gostava de montar a cavalo, também branco, saindo a passear pela cidade do Penedo, aquela “Cidade Acrópole”, despertando a curiosidade dos penedenses. Uma fotografia, aliás histórica, onde o vemos, impecavelmente de branco, inclusive os sapatos, veio às minhas mãos e eu a ofereci ao Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, a minha Casa, a nossa Casa, a Casa da Cultura de Alagoas.
Foi tudo tão rápido em minha mente! Respondi que aceitaria, sem pensar na grande responsabilidade que iria pesar em meus ombros.
Descendo profundo às pesquisas sobre “a sua vida e obra” pensei em focalizar Delmiro Gouveia, - HOMEM DE VISÃO SOCIAL, POLÍTICA E EMPRESARIAL.
Refletindo sem as amarras do sentimentalismo, aliás, muito presente aos escritos a seu respeito, cheguei à conclusão de que a sua grandeza não comporta comparação como: o taumaturgo, o milagreiro, o messias que teve a missão de redimir o sertão das Alagoas.
Desejo, sim, traçar o perfil de Delmiro Gouveia conforme o pensamento moderno da História sob o enfoque:
- Delmiro Gouveia conquista espaço
- Delmiro afirma-se sócio-economicamente
- Delmiro, competência empresarial
Conseqüência: seria um “incômodo” para os grupos detentores do poder econômico.
A História Moderna, enriquecida pela presença das disciplinas auxiliares: sociologia, antropologia, psicologia e outras, na horta presente tem uma missão específica séria e objetiva, no trato com o fato histórico, dando-lhe uma visão científica. Assim sendo, não há lugar para o fato histórico ser apresentado, apenas, dentro de uma linha narrativa e episódica, onde o homem, o agente, aparece com ares de “herói, taumaturgo, ou messias”.
Aliás, esse conceito tem as suas raízes bem profundas na mentalidade de uma religiosidade popular brasileira – “milagreira e guerreira”, a qual fora repassada para a população como um todo, em decorrência da corrente filosófica “Positivista” de Augusto Comte.
Dentro dessa visão nova da História é que temos condição de rever a figura extraordinária de Delmiro Gouveia.
Daí não conseguir:
- vê-lo, como um fenômeno a desafiar o progresso;
- tê-lo, como taumaturgo ou milagreiro que veio a redimir o sertão alagoano;
- aceitá-lo, com o um herói, pois ele era um cidadão consciente e participante de um momento histórico.
Delmiro Gouveia foi um homem dotado de visão administrativa, presente ao despertar de uma nova era comprometida com o processo industrial, conhecedor atilado das possibilidades das forças da natureza, ousado em seus planejamentos, objetivo na conquista de suas metas, desejoso de inovar, construindo, para servir a uma região carente e a um povo cheio de esperanças.
Esta é a mensagem que pretendo deixar de Delmiro Gouveia, anulando aquela de cunho paternalista, onde ele parece ter sido forçado na mente e na retina de tantos, como o herói, o taumaturgo ou messias, talvez, trazendo a carga da religiosidade popular do Padre Cícero, também cearense, tão assimilada pelo povo nordestino.
Essa nossa afirmação vai encontrar respaldo na obra do Mestre Félix Lima Júnior, quando nos apresenta uma propaganda do produto industrializado da Pedra, estampando uma efígie do Padre Cícero. Havia, não há negar, uma estreita identificação no julgamento popular de que Delmiro Gouveia era o novo Padre Cícero do sertão alagoano.
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Autoridades
Minhas senhoras e meus senhores
Aceitei o desafio. Aqui estou. Com emoção andei cada palmo de estrada até chegar a essas paragens!
Pisar a terra sertaneja é sentir forte toda a pujança da alma brasileira no que tem de mais autêntico. Pisar o chão sertanejo é experimentar no fundo do meu eu, o orgulho de ser brasileiro.
Falar de Delmiro Gouveia, portanto, aqui, no palco de suas lutas, realizações, vitórias e sacrifícios, é plenamente gratificante. Para fazê-lo, impossível seria, desconhecer os importantes trabalhos: “Delmiro Gouveia, Pioneiro de Paulo Afonso” , de Tadeu Rocha e – “Delmiro Gouveia, O Mauá do Sertão Alagoano” de Félix Lima..
Com feliz objetividade, Tadeu Rocha diz em seu trabalho: “...ele inaugurou em pleno sertão, a era industrial, aproveitando as forças da natureza, a matéria prima regional e o braço do trabalhador nordestino, descendente de brancos e índios da região das últimas quedas do ‘rio dos curais’ que também foi (e continua sendo) o ‘rio da unidade nacional’”.
Aí está o valor de Delmiro Gouveia, presente às realidades regionais, preocupado na escuta das necessidades de uma gente, ousado em criar, forte em executar, admirável em visualizar, com acerto, o futuro econômico e social, presente a uma nova era a ser instaurada, humano em sua conduta, mas consciente de sua condição de um agente da História.
Dentro dessa ótica, ele, Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, servindo e construindo passou a História com o holocausto de sua vida, sendo de fato e de direito “Pioneiro de Paulo Afonso”.
Dentro ainda desse panorama podemos colocar Delmiro Gouveia, pois ele é fruto, como homem, participante de uma sociedade ainda patriarcal, absolutista, vindo a justificar certas e determinadas atitudes comportamentais no dia a dia. Como empresário, é presença consciente de uma sociedade capitalista industrial que lutava por espaços, como homem era todo voltado para o social.
Essa sua postura definida e altiva “incomodava”, de certo, aos grupos econômicos internacionais e também nacionais que não aceitavam, fosse o menino de Ipú, um comerciante bem sucedido e no futuro um empresário vitorioso.
A vida lhe fora ceifada de maneira brutal e Tadeu Rocha, descreve-o com a alma plena de revolta: “... o pioneiro de Paulo Afonso foi traiçoeiramente assassinado, na noite de 10 de outubro de 1917. As balas que atingiram o seu vigoroso corpo também alcançaram o próprio coração do nordeste, onde Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, fizera brotar no meio da caatinga, em terras semi-áridas, a nova civilização industrial”.
Tombou para sempre, não o herói, nem o taumaturgo, mas um homem com toda a pujança de sua grandeza, como administrador e empresário, envolvido com a realidade de servir, consciente de sua cidadania brasileira, sua condição de nordestino, intrépido, corajoso, ousado, realizando uma obra que o imortalizou, colocando-o na História.
A sua coragem em realizar, a sua postura em construir, é marca autêntica do homem nordestino que ainda hoje sofre talvez uma sutil discriminação dentro do espaço nacional, quando este homem humilde, forte, simples, mas altivo é obreiro notável da construção deste Brasil que é nosso e desperta como Delmiro Gouveia o fez, despertando o sertão das Alagoas e do Nordeste, para uma nova era de liberdade sócio-econômica e política.
Exmas. Autoridades, minhas Senhoras, meus senhores:
Da união de Delmiro Porfírio de Farias e Dona Leônia Flora da Cruz Gouveia, em 5 de junho de 1863, nasceu em Ipú, no Ceará, a criança que na Pia Batismal, receberia o nome de Delmiro Augusto da Cruz Gouveia. Seu progenitor, homem valente, destemido, resoluto, seguiu para o Paraguai, lutando e morrendo. Tadeu Rocha informa: “morreu assim, lutando, corpo a corpo, nas linhas de frente da marcha de flanco, na Guerra do Paraguai, o antigo ‘cavalariano’, ipuense Belo de Farias – Capitão Delmiro Porfirio de Farias – deixando viúvas duas mulheres e órfãos sete filhos, o último dos quais estava com quatro anos de idade e tinha o nome de Delmiro Augusto da Cruz Gouveia”.
Aqui tem início a caminhada de Delmiro na conquista de um espaço na sociedade. A senhora Leônia Flora, tendo ciência da morte de seu companheiro, sem meios deixou o Ceará e rumou para Pernambuco. Informa o Mestre Félix Lima Júnior, que fora empregada doméstica na residência do dr. José Vicente Meira de Vasconcelos, advogado e professor de Direito, vindo a ser seu esposo em “in articulo mortis”.
Delmiro crescia, procurava decerto estudar, envolvido e marcado por uma vida de sacrifícios: adolescente saiu à procura de emprego. Bateu à porta do escritório da Pernambuco Street, proprietária dos trens. A sua postura de um jovem expedito, elegante, foi o necessário para conseguir uma colocação de condutor de trem. No convívio com os gringos chegou à condição de encarregado da estação de Caxangá, pelo seu amor ao trabalho, dedicação, disciplina, pontualidade e firmeza.
Daí, já com uma estrutura de trabalho, graças ao conhecimento do inglês, passou para a firma Iona & Krause. O seu grande sonho já estava se tornando realidade: conquistar o espaço na sociedade econômica. Em 1881, registrou-se na Alfândega como “Caixeiro Despachante”, da firma Joaquim Duarte Simões. Não obteve sucesso. Resolveu empregar-se em um armazém de “courinhos”, como chamavam as peles secas de bodes e carneiros. Como caixeiro comprador, viajou pelo interior do Nordeste. O seu dinamismo, a sua visão comercial, o seu trato muito cordial com os fornecedores dos “courinhos”, o levaram a montar uma firma com o nome de “Levy & Delmiro”. O espaço estava conquistado. Esse tipo de comércio garantiu-lhe a sua independência econômica, abriu-lhe as portas da alta sociedade recifense, graças à sua habilidade, finura no tratamento e elegância.
A sua convivência com o comércio, a exportação de suas mercadorias, levaram-no a aprimorar o seu inglês e a aprender o italiano e francês. Viajou para a América do Norte, celebrou negócios e retornou, garantindo ser o maior exportador de “courinhos”.
O seu espaço econômico fora conquistado e como é de se esperar o ciclo social também o foi. A sua visão empresarial garantiu um arrojado plano que seria a construção do Mercado do Derby, em Recife, tornando-se o ponto alto do comércio daquela cidade. As instalações modernas, o parque para as crianças, divertimentos para adultos, tudo recebia os mais rasgados elogios e a correspondência da comunidade. Delmiro Gouveia, realmente, não só conquistou o espaço econômico, bem como o social. Delmiro Gouveia, começa a “incomodar”.
Plínio Cavalcante, informa: “O prestígio, porém, desse grande comerciante tornava-se, dia a dia, mais real e valioso. A sua permanência ali era uma ameaça à situação política de então. Delmiro Gouveia poderia, de uma hora para outra, fazer ir pelos ares toda a máquina política do capitão mor daquela feitoria republicana. Eliminá-lo seria precipitar os acontecimentos, lançar no ânimo do povo oprimido, o rastilho da revolução, ao invés da força, seria mais oportuna a fogueira da Inquisição. Destruída a causa, cessaria o efeito. E foi assim que tocaram fogo no Derby, o monumento comemorativo de sua passagem em Pernambuco”.
Esse lamentável acontecimento foi no dia 1 de janeiro de 1900, prenúncio de uma maior tragédia que o aguardava, preço de seu valor como comerciante corajoso e empresário de visão a morte.
Ainda montou o Hotel Internacional, considerado na época “o melhor do Brasil”. Como podemos observar, Delmiro Gouveia, com a sua coragem, com a sua visão de criar espaços no comércio, tornou-se, em meio à sociedade econômica o que já afirmei: “incômodo”.
Dois depoimentos não poderiam escapar à nossa pesquisa que justificam o que definimos a seu respeito em rumo à conquista de espaço econômico e social.
De Mauro Mota: “Perdeu o que possuía, pois o fogo só deixou, intacto, que era impossível alcançá-los, o idealismo e a coragem do artífice do monumento queimado”.
De Gilberto Freyre: “Refere-se (Félix) a uma das figuras mais notáveis da história industrial do Norte do Brasil: o organizador da Fábrica da Pedra, com a energia de Paulo Afonso. Um arrojado pioneiro”.
Pelo que tentamos apresentar já nos dá uma visão do homem que era Delmiro Gouveia detentor de uma competência empresarial a toda prova.
Em 1902, esse notável empresário e comerciante veio residir em Maceió. Poderia ter permanecido e acumulado riquezas. O seu espírito de conquista e de realizador o empurrou em 1903, para Água Branca, sendo acolhido de maneira fidalga pela Baronesa e seus filhos. Visitou Pedra e de lá partiu para o seu primeiro contato com a Cachoeira de Paulo Afonso. Viu o Rio São Francisco. Refletiu, decerto, sobre o seu potencial. Idealizou a sua grande obra.
Continuava o seu comércio de “courinhos” e quem sabe, não “incomodava”? Entre os tropeiros que o serviram informa Félix Lima Júnior, esteve Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, que escreveu:
“Eu em toda minha vida/ Nunca fui cabra de peia/ Antes de ser cangaceiro/ Respeita a vida alheia/ Trabalhei e almocrevei/ Para seu Delmiro Gouveia”.
Delmiro Gouveia viu o potencial líquido da Cachoeira de Paulo Afonso. Talvez, não o conhecesse, no entanto tinha notícias do seu valor e do quanto aproveitado fosse, poderia servir à uma região. O projeto do aproveitamento do São Francisco já era antigo. Já no Mapa de Cantino, primeiro sobre o Brasil, divulgado em 1502, aparece o Rio São Francisco. Maurício de Nassau em 1637, em sua conquista do sul da Capital de Pernambuco, chegou à Penedo e após, conhecer o velho “Opara” dos Caetés, escreveu ao seu parente, o Príncipe de Oranges: “pedindo colonos das galés, cadeias e detenções, soldados, armas e bandeiras”. Seu objetivo era colonizar a região sanfranciscana.
O Mestre Medeiros Neto, sertanejo de Traipú, nascido à sombra da Serra da Tabanga, escreveu um precioso trabalho: História do Rio São Francisco. Diz o mestre: “Quando se pensa num Rio como o São Francisco, rio do ‘interland’ do sertão, rasgador do oeste, é crime abandoná-lo à sua sorte. Nenhuma corrente fluvial é tão credora do sacrifício e de civismo, como se manifesta o São Francisco. Concebeu isto o Império melhor que a República”. Continua: “Unir o sul e o norte era papel do Império para manter-se incólume”.
José Bonifácio de Andrade e Silva, afirmou, com muita grandeza: “Se num rio nasceu a Pátria independente, dos rios depende a independência da Pátria”. Lamentável que os nossos rios interiores sejam tão esquecidos!
D. Pedro, preocupado com a grandeza do Rio São Francisco, resolveu convocar cientistas para estudá-lo. Um aspecto importante nos é apontado pelo Mestre Medeiros Neto que foi a Estrada de Ferro, fruto dos estudos do técnico alemão Kruger “o qual levou a efeito este verdadeiro traço de união, ligando as apertadas gargantas e os pequenos contra-escarpas da serras que limitam o período encachoeirado de Paulo Afonso”.
Esses estudos foram autorizados pelo decreto 6.941, de 19 de julho de 1878, cabendo a Cansanção Sinimbu grande participação.
O Império, pelos Decretos nº 3.749 e nº 3.920, de 31 de julho de 1877, facultou a navegação mercante e o comércio com o Baixo São Francisco. Essa liberação foi um trabalho do dr. Francisco Inácio de Carvalho Moreira – o Barão de Penedo.
O Mestre Medeiros Neto afirma com muita visão e alma de sertanejo: “Plantado estava o marco do desenvolvimento da zona industriosa do Opara”.
Ainda permitam-me transcrever da obra de Medeiros Neto, “...o que ele pensa de Delmiro: vem aqui, plantar, o que hoje podia ser o maior centro industrial do Estado: Pedra. No meio da caatinga ergue uma cidade, a qual se transforma em centro econômico.”
Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, chegou à Pedra, sertão alagoano e essa chegada é até cantada em versos populares por Raimundo Pelado:
“Delmiro, quando chegou/ Naquele triste lugar/ Aquilo ali era deserto/ De ninguém querer morar/ Não tinha casa nem gente/ na estrada para passar/ terra de pedra e de espinhos/ Da macambira rasteira/ Naquele sertão medonho/ Só ouvia a vida inteira/ O ronco da canguçu/ E o ronco da cachoeira”.
Tadeu Rocha nos fornece um dado de valor histórico, talvez por muitos desconhecidos, sobre a origem do nome da Cachoeira de Paulo Afonso.
“No primeiro ano do século imediato (XVIII), o sertanista Paulo de Viveiros Afonso já ligara o seu nome à última cachoeira grande do S. Francisco. Em carta patente de 17 de março de 1701, aparece pela primeira vez uma referência à ‘cachoeira de Paulo Afonso’, na confirmação de João Fernandes Galvão, no posto de Capitão de Cavalos da Ordenança do Distrito do Rio São Francisco. Em outra carta patente de 28 de fevereiro de 1703, já existe expressa ao ‘Distrito da cachoeira de Paulo Afonso’, na confirmação de Domingos Maciel de Faria, como Capitão de Infantaria da Ordenança desse Distrito”. Melhor esclarecendo o fato vamos encontrar ainda em Tadeu Rocha, a confirmação que segue: “A descoberta dessas Cartas Patentes veio confirmar as revelações do historiador Felisberto Freire sobre a presença de Paulo de Viveiros Afonso da região do ‘sumidouro’ do Rio São Francisco, no primeiro quartel do século XVIII”.
Em janeiro de 1903, Delmiro Gouveia fixou-se na Pedra, abriu o armazém de “courinhos” mudando-se logo após para a sua fazenda “Buenos Aires” onde construiu a sua Casa Grande, o seu mundo absolutista, o verdadeiro quartel general de onde iriam surgir os ousados traçados por um empresário de visão.
Ali, foram arquitetadas duas iniciativas de grandeza econômica-social, melhoria do gabo bovino, caprino e suíno, levando ao sertão os métodos modernos da pecuária e a introdução do cultivo da palma. Delmiro Gouveia dá início ao grande trabalho de montagem das instalações para captar energia elétrica da Cachoeira de Paulo Afonso, conforme concessão pelo decreto nº 520, de 12 de agosto de 1911. Houve luta, trabalho, decisão e muita coragem até que no dia 6 de junho de 1914 foi inaugurada a Fábrica da Pedra. É bom lembrar que o Brasil já havia assistido a dois pedidos de concessão para o aproveitamento de Paulo Afonso. O brasileiro João José do Monte em 1890, não chegando a iniciar os trabalhos. Em 1910 o inglês Richard George Reidy, fez o mesmo pedido, bem como para outras quedas do São Francisco, mas não obteve a concessão. Nesse mesmo ano, talvez tomando conhecimento das pretensões do inglês citado, Delmiro Gouveia obteve de Alagoas o direito de aproveitamento das terras devolutas de Água Branca e logo em seguida para a captação da energia de Paulo Afonso.
Aliás, é bom esclarecer que a fase industrial data de 1890 no Brasil com a intensificação da cultura do café. As crises de produção canavieira do século XIX em declínio motivou a mudança de atividade agrícola, como dissemos, pela dinamização da cultura cafeeira. Esse novo ciclo foi intensificado pela demanda internacional de fibras. Todavia, a industrialização da fibra no Brasil despertou o movimento de pressão dos grupos econômicos internacionais. É bom lembrar que a produção de algodão em Alagoas, além do sertão, era bem compensadora em Viçosa, União dos Palmares e Quebrangulo, conforme informa o prof. José da Silveira Camerino, em sua Geografia das Alagoas. E, ainda, convém lembrar que já em 1857, em Fernão Velho, funcionava a “Fábrica Carmem” da “Companhia União Mercantil”. Isto é um indicador forte que mostra que Delmiro Gouveia não foi o introdutor da industrialização da fibra de algodão em Alagoas e sim no sertão alagoano, graças a sua visão de aproveitamento do potencial líquido do São Francisco.
Delmiro Gouveia, além de empresário, cabe-lhe louvores pelo fato de ter sido o introdutor, ou melhor, ter implantado em Alagoas, o sistema de oito horas de trabalho semanais, com descanso dominical. Criou espaços de recreação, cinemas, jogos de futebol, setor de educação e saúde.
Oliveira Lima, admirado com a obra de Delmiro Gouveia, disse: “Nunca supus, e com dificuldade acreditaria se não o tivesse visto, que no alto sertão se encontrasse o que debalde se procuraria na zona açucareira ou mesmo nas capitais destes Estados, um resultado devido simplesmente – um simplesmente que é tudo – ao empenho que um homem pôs em construir um edifício moral da solidez e do brilho de que me foi dito admirar”.
Toda essa obra monumental, plantada no sertão alagoano, foi, não há negar possível, graças à grandeza administrativa de Delmiro Gouveia, aliada, ao braço forte digno do homem do sertão.
Tadeu Rocha volta a nos informar: “O que o banditismo internacional não pode fazer, o banditismo nacional executou com perfeição. As balas homicidas, deflagradas contra Delmiro Gouveia, não interromperam, apenas, o curso da vida de um extraordinário pioneiro, também retardaram, de uns quarenta anos, a marcha do progresso do Nordeste.”
A presença, pois, de Delmiro Gouveia no sertão alagoano começou a incomodar e muito. Toda uma região trabalhando para fornecer fibras para o comércio nacional e de modo especial externo, agora ficaria para atender às necessidades da indústria de linha local. Nesse aspecto é de importância o que virá a acontecer no futuro. A insatisfação de grupos econômicos deve ter manipulado reações fortes e desleais.
O aproveitamento da força hidráulica gerou protestos, agitação, até com cartazes em Maceió: “A CACHOEIRA É NOSSA”. Puro sentimentalismo, pois ela, a Cachoeira de Paulo Afonso, sempre existiu, como adormecida, na contemplação platônica de suas próprias realidades. Agora, quando um homem da grandeza de Delmiro Gouveia, se propõe a aproveitá-la, surgem movimentos contestatórios!
O Governo Euclides Malta, consciente do valor da obra a ser implantada, atendeu ai requerimento da Iona & Cia.: pelo Decreto já citado de nº 520, de 12 de agosto de 1911, concede a concessão para o aproveitamento da força hidráulica de Paulo Afonso. Podemos avaliar como foi agitada essa fase de conscientização da sociedade alagoana! Delmiro Gouveia, forte, afeito às lutas, começa, também, a “incomodar” em Alagoas.
Aliás, toda sua vida foi um perene “incômodo”, ao universo econômico e industrial, político e social, somente e tão somente, porque era um homem de realizações e desafios. Esse é o preço dos inteligentes, operosos, dinâmicos, dos que enxergam e vão além e muito além, abrindo espaços, rasgando veredas, construindo o presente e empurrando a sociedade para as realizações futuras.
A fábrica de linhas - Em setembro de 1913 fora iniciada a construção do edifício e inaugurada em 1º de julho de 1914. A qualidade da linha da Pedra era excepcional, chegando mesmo a provocar ditados populares. “forte como a linha de Pedra”.
Estógio Wanderley, escreveu: “As linhas eram tão boas ou melhores do que as estrangeiras da marca Corrente e Alexander, as únicas conhecidas no Brasil”.
A “Cia Agro Fabril Mercantil” lançava ao mercado o seu produto, a “Linha Estrela”. Delmiro Gouveia com sua larga visão empresarial, passou a anunciar, no Rio de Janeiro, pelo “Correio da Manhã”, conforme informa Félix Lima Júnior:
“Linha nacional marca ‘Estrela’ – Fábrica da Pedra Alagoas” – Presta-se perfeitamente para coser e bordar à máquina. Indústria genuinamente brasileira”.
“O público, em geral, somente acredita em artigos estrangeiros; está, porém, provado que a nossa linha ‘Estrela’, artigo genuinamente nacional é mais forte, macia e melhor confeccionada que qualquer outra marca”.
“Nossa fábrica ocupa 2.000 operários brasileiros e nossa é linha fabricada com matéria-prima exclusivamente nacional. Esperamos que o público não deixe de comprar a nossa linha de superior qualidade, para dar preferência à mercadorias estrangeiras ou com rótulo aparentemente nacional”.
No Diário de Pernambuco em outubro de 1917 estava um outro anúncio: “A linha nacional marca ‘Estrela’ está à venda nas Repúblicas Sul-Americanas, no sul do Brasil, na colônia inglesa de Barbados e em todo o arquipélago das Antilhas e na Terra Nova”.
Como vemos, era um produto aceito, vendável e exportável, o que veio a acontecer.
O Mestre Félix Lima Júnior, comentando o fato, diz uma grande verdade: “Imagine o desespero dos escoceses da Machine Cotton, vendo Delmiro Gouveia exportando linha para as colônias britânicas, eles que tinha o monopólio mundial”.
Apaguemos, pois, essa imagem de nossas mentes, se é que ainda existe, de um Delmiro redentor, milagreiro. Ele deve ser homenageado porque foi um exemplo de grandeza, um serviço constante, um realizador audacioso.
Ele não veio ao sertão alagoano trazer uma mística assistencial ou caritativa. O sertanejo não é um indigente e sim um injustiçado sobretudo. Já é tempo de acabar com esse conceito abusivo em relação ao homem do sertão. Ele é forte, é tenaz, é trabalhador, é digno. Se lhe falta algo, não é fruto de uma indolência, mas ausência nossa, de modo especial dos responsáveis pelos destinos da Pátria.
O sertão alagoano o recebeu com dignidade. Sua gente tem grandeza e muita grandeza d’alma, sentimento cívico e de modo especial Fé Cristã, herança maior deixada pelos seus antepassados.
Delmiro Gouveia teve êxito em seus planos, porque encontrou no braço forte do homem do sertão das Alagoas, esse homem que faz a grandeza do nosso Brasil, no dia a dia, um sustentáculo poderoso e destemido.
Duas forças somaram-se. A visão técnica e empresarial de Delmiro Gouveia e a presença pujante, valorosa, do homem do sertão alagoano.
Você, caro irmão do sertão, deve lutar. Nunca estender a mão, mas conquistar os espaços, com nobreza, coragem, decisão e brasilidade.
Mister se faz, acabar essa idéia de que o sertanejo é um eterno indigente, incapaz, indolente, talvez. Nunca! O homem do sertão é sinônimo de luta, de conquista, de grandeza. Nobre e de personalidade marcante.
O sertão não pode parar. O homem que habita esta região nobre da Pátria precisa ter consciência de sua grandeza e de seu espaço no processo conquistado da total liberdade democrática de nossa Pátria.
Entre nós brasileiros não pode existir maior ou menor, somos um todo dentro desta terra. O que nos pode faltar é “uma consciência de nosso valor”. Muitas vezes “essa consciência nos é sufocada”, porque? Unicamente, para não conquistarmos o nosso espaço.
Não há mais lugar para o homem do sertão ser explorado. Vocês são dignos do progresso, não oferecido como esmola, mas fruto da sua própria conquista.
Tenham, em Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, um espelho de luta, uma força de decisão, uma realidade de vitória.
Essa é a sua missão, povo do sertão alagoano: guardar a Fé, transformar essa região pelo trabalho, viver, com toda a pujança da sua grandeza de “sertanejo”, a grandeza maior, de ser “brasileiro”.
(*) Professor do CESMAC, profundo conhecedor de arte barroca e sacra, escritor e poeta.
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