Paulo Dantas (*)
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“O Nordeste até hoje, seu moço, só deu três grandes homens. Estou procurando formar a quadra, mas não acho.”
- Muito bem, Mainha. Quem são esses três grandes do Nordeste?
- “Padre Cícero, na oração; Lampião na valentia e Delmiro Gouveia no trabalho.”
Essa conversa aconteceu comigo, em 1955, quando na cidade de Pedra, interior de Alagoas, estive à procura de material humano sobre a vida e a obra social de Delmiro Gouveia, o pioneiro de Paulo Afonso e o precursor da redenção econômica nos sertões nordestinos.
Divulgada a fala curiosa de Mainha, morador de Pedra, a mesma ganhou a imprensa e o rádio, tornando-se um achado definidor do inconsciente coletivo do Nordeste. Virou folclore social vivo, verso de violeiro de feira, dito popular anônimo, aparecendo até em tratado de sociologia estrangeira.
TRINDADE NORDESTINA
O folclore heróico já imortalizou o cangaceiro, através das façanhas de Lampião e o seu bando. O folclore místico do beato exaltou Antônio Conselheiro, e, sobretudo, o Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, chefe romeiro dos sertões. Já ao folclore social cabe a missão de divulgar Delmiro Gouveia, cearense do Ipu, cujo centenário de nascimento o Brasil comemorou inteiro em 1963, através do aparecimento de numerosa biografia.
De lá para cá, a glória de Delmiro Gouveia só tem crescido e recentemente até um folheto ilustrado muito importante, inserido em enciclopédia avulsa, apareceu, consagrando em definitivo, esse extraordinário brasileiro, figura histórica e social do porte de um Mauá.
Completada, podemos dizer, essa trindade bendita dos gigantes do Nordeste, no tempo e no espaço, certeza temos de que o Brasil vai cumprir seu papel social na história contemporânea.
QUEM É O HOMEM
Descendente de portugueses antigos, gente colonizadora, Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, filho de Delmiro Porfírio de farias e Leonila Flora da Cruz Gouveia, nasceu em 5 de junho de 1863, na então Vila Nova Ipu Grande, no Ceará. (Erraram alguns biógrafos quando situaram o nascimento do nosso herói em Sobral).
Cearense no melhor sentido do termo, com formação pernambucana, espírito avançado para a época, enamorado das mais avançadas técnicas estrangeiras aplicadas ao trabalho e ao desenvolvimento econômico e social do Nordeste, Delmiro Gouveia acabou realizando seu destino de homem e de pioneiro dos sertões de Alagoas, na cidade de Pedra, para onde fora perseguido pela polícia pernambucana, devido ao rapto famoso de uma bela jovem, a Eulina, fina flor do Recife, protegida e afilhada do então Governador da Província, Segismundo Gonçalves. Esse romance de amor foi um escândalo na época, já que além de casado, Delmiro Gouveia era figura muito importante na “bela época” social do Recife, tendo solar no hoje chamado bairro de Apipucos, tão decantado pelo sociólogo Gilberto Freyre.
Sertanejo de gostos apurados, muito dado às mulheres e às aventuras amorosas, a vida passional de Delmiro Gouveia encheu a crônica, vindo se projetar até nossos dias como um tipo digno de um romance. Ando nessa pista e assim abro uma das minhas novelas do TREBO DOS ESPANTOS.
- Juvêncio amigo, a conclusão a que cheguei agora é de que não fui muito afortunado no amor, apesar de ter amado tanto.
- Bem que o coronel merecia mais, mas é sempre assim. Feliz no jogo ou no negócio, infeliz no amor. Acho, porém, que o coronel é um homem realizado. Criou Pedra, botou a cachoeira pra funcionar, industrializou esse pedaço de sertão.
- Bondade sua, compadre. O rio pode ser federal, mas desse nosso lado de cá, lado macho das Alagoas, ele é meu. Me fiz dono e usufrutuário de suas águas na cachoeira, mas isto não foi só pro meu bem. É pra Nação, para o povo inteiro tirar das suas águas o proveito e o conforto da luz elétrica.
- Bem sei disto, compadre Delmiro. Sua fama corre longe.
Altaneiro, sempre vestido de branco, vaidoso como um coronel do sertão, Delmiro Gouveia conversava com o amigo Juvêncio na varanda da sua residência.
- Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Quem tem água não morre pagão – sentenciou, olhando longe. Mas hoje não estou pra esses assuntos sociais. Quero é conversar com o amigo sobre o amor, sobre as mulheres. Bem sei que são assuntos bem complicados e difíceis. Mais difícil mesmo do que domar a natureza.
Juventina, a jovem concubina com quem Delmiro Gouveia estava vivendo, entrou na varanda.
- Jove, - disse Delmiro – traga aqui um café pra nós. Estamos aqui, eu e o compadre Juvêncio, trocando umas confidências.
Submissa e mansa, a mulher obedeceu, rumando para a cozinha.
- De todas as mulheres de minha vida, a Juventina foi a mais humilde. Veio de Pernambuco e pela idade, bem que podia ser minha filha.
Fez uma pausa:
Amo nessa jovem, além da sua beleza morena a humildade. Jove é uma menina sofrida. Já a Anunciada a Iaiá, minha primeira esposa, apesar de gênio recatado, complicou tudo com o maldito orgulho; a Eulina, mãe dos meus três filhos, também. Não suportava esse deserto de Pedra e não quis me ajudar em nada. A Jove não, é muito boazinha. Não reclama nada... Ando com o pressentimento que ela vai ser a última mulher da minha vida.
- Bobagem, coronel. Não diga isso...
E de fato foi essa Juventina de Castro, pernambucana de 24 anos de idade, o último amor de sua vida, já que aos 20 de outubro de 1917, tombou Delmiro Gouveia na varanda da sua casa, assassinado por misteriosos inimigos.
Estava com 54 anos e já havia consolidado nos sertões alagoanos uma obra social de avançado estilo, criando Pedra, uma cidade-modelo, com água encanada, luz, conforto e higiene, além de escolas, creches, parques de diversões etc.
Verdadeiro Mauá dos nossos sertões, espécie de um Bernardo Sayão da nossa indústria, Delmiro Gouveia foi uma figura positiva, um verdadeiro dínamo propulsor de entusiasmos sociais e criadores na história econômica do Brasil na primeira década deste século. A ele o Nordeste deve seu grande impulso de libertação, seu primeiro gesto de industrialização total.
Órfão em plena infância, Delmiro Gouveia ainda menino deixou o Ceará, indo se criar no recife, onde inicialmente trabalhou nos trens suburbanos da Pernambuco Street Railway Company, chegando a ser chefe-de-estação.
Filho de pai boiadeiro, morto na guerra do Paraguai, Delmiro desenvolveu dentro de si impulsos heróicos e caminheiros, trazendo na massa do sangue o gérmen de um grande progressista comerciante.
Deixando os trens da velha Caxangá tornou-se negociante de peles de bode (seu grito de guerra era “fora do bode não há salvação”), chegando a ser, entre nós, o precursor do sistema dos supermercados de abastecimento, com a criação do Derbi, estabelecimento que foi incendiado pelos inimigos políticos enchendo a crônica recifense da época de espanto.
Casado com dama nobre, viaja para o estrangeiro e ganhando muito dinheiro, torna-se senhor respeitável, dono do solar “Vila Anunciada”, ditador da moda e de fidalgas maneiras.
A realização, porém, do seu destino estava nos sertões de Alagoas, onde tornou-se pioneiro na eletricidade, da grande indústria, da vila operária, da água encanada, da assistência social, do automóvel, das estradas, dos melhoramentos industriais e das diversões públicas.
Criador da indústria do bode, introduziu também o zebuamento bovino, a plantação da palma forrageira, a linha de coser, o cinema e a máquina de escrever, o futebol e a patinação, tudo isto no duro e viril sertão das pedras e dos cactos, dos homens e das mulheres merecidas.Foi, em todos os sentidos, um sertanista moderno, um pioneiro social dos mais avançados que tivemos em todos os tempos.
“O Nordeste até hoje, seu moço, só deu três grandes homens. Estou procurando formar a quadra, mas não acho.”
- Muito bem, Mainha. Quem são esses três grandes do Nordeste?
- “Padre Cícero, na oração; Lampião na valentia e Delmiro Gouveia no trabalho.”
Essa conversa aconteceu comigo, em 1955, quando na cidade de Pedra, interior de Alagoas, estive à procura de material humano sobre a vida e a obra social de Delmiro Gouveia, o pioneiro de Paulo Afonso e o precursor da redenção econômica nos sertões nordestinos.
Divulgada a fala curiosa de Mainha, morador de Pedra, a mesma ganhou a imprensa e o rádio, tornando-se um achado definidor do inconsciente coletivo do Nordeste. Virou folclore social vivo, verso de violeiro de feira, dito popular anônimo, aparecendo até em tratado de sociologia estrangeira.
TRINDADE NORDESTINA
O folclore heróico já imortalizou o cangaceiro, através das façanhas de Lampião e o seu bando. O folclore místico do beato exaltou Antônio Conselheiro, e, sobretudo, o Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, chefe romeiro dos sertões. Já ao folclore social cabe a missão de divulgar Delmiro Gouveia, cearense do Ipu, cujo centenário de nascimento o Brasil comemorou inteiro em 1963, através do aparecimento de numerosa biografia.
De lá para cá, a glória de Delmiro Gouveia só tem crescido e recentemente até um folheto ilustrado muito importante, inserido em enciclopédia avulsa, apareceu, consagrando em definitivo, esse extraordinário brasileiro, figura histórica e social do porte de um Mauá.
Completada, podemos dizer, essa trindade bendita dos gigantes do Nordeste, no tempo e no espaço, certeza temos de que o Brasil vai cumprir seu papel social na história contemporânea.
QUEM É O HOMEM
Descendente de portugueses antigos, gente colonizadora, Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, filho de Delmiro Porfírio de farias e Leonila Flora da Cruz Gouveia, nasceu em 5 de junho de 1863, na então Vila Nova Ipu Grande, no Ceará. (Erraram alguns biógrafos quando situaram o nascimento do nosso herói em Sobral).
Cearense no melhor sentido do termo, com formação pernambucana, espírito avançado para a época, enamorado das mais avançadas técnicas estrangeiras aplicadas ao trabalho e ao desenvolvimento econômico e social do Nordeste, Delmiro Gouveia acabou realizando seu destino de homem e de pioneiro dos sertões de Alagoas, na cidade de Pedra, para onde fora perseguido pela polícia pernambucana, devido ao rapto famoso de uma bela jovem, a Eulina, fina flor do Recife, protegida e afilhada do então Governador da Província, Segismundo Gonçalves. Esse romance de amor foi um escândalo na época, já que além de casado, Delmiro Gouveia era figura muito importante na “bela época” social do Recife, tendo solar no hoje chamado bairro de Apipucos, tão decantado pelo sociólogo Gilberto Freyre.
Sertanejo de gostos apurados, muito dado às mulheres e às aventuras amorosas, a vida passional de Delmiro Gouveia encheu a crônica, vindo se projetar até nossos dias como um tipo digno de um romance. Ando nessa pista e assim abro uma das minhas novelas do TREBO DOS ESPANTOS.
- Juvêncio amigo, a conclusão a que cheguei agora é de que não fui muito afortunado no amor, apesar de ter amado tanto.
- Bem que o coronel merecia mais, mas é sempre assim. Feliz no jogo ou no negócio, infeliz no amor. Acho, porém, que o coronel é um homem realizado. Criou Pedra, botou a cachoeira pra funcionar, industrializou esse pedaço de sertão.
- Bondade sua, compadre. O rio pode ser federal, mas desse nosso lado de cá, lado macho das Alagoas, ele é meu. Me fiz dono e usufrutuário de suas águas na cachoeira, mas isto não foi só pro meu bem. É pra Nação, para o povo inteiro tirar das suas águas o proveito e o conforto da luz elétrica.
- Bem sei disto, compadre Delmiro. Sua fama corre longe.
Altaneiro, sempre vestido de branco, vaidoso como um coronel do sertão, Delmiro Gouveia conversava com o amigo Juvêncio na varanda da sua residência.
- Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Quem tem água não morre pagão – sentenciou, olhando longe. Mas hoje não estou pra esses assuntos sociais. Quero é conversar com o amigo sobre o amor, sobre as mulheres. Bem sei que são assuntos bem complicados e difíceis. Mais difícil mesmo do que domar a natureza.
Juventina, a jovem concubina com quem Delmiro Gouveia estava vivendo, entrou na varanda.
- Jove, - disse Delmiro – traga aqui um café pra nós. Estamos aqui, eu e o compadre Juvêncio, trocando umas confidências.
Submissa e mansa, a mulher obedeceu, rumando para a cozinha.
- De todas as mulheres de minha vida, a Juventina foi a mais humilde. Veio de Pernambuco e pela idade, bem que podia ser minha filha.
Fez uma pausa:
Amo nessa jovem, além da sua beleza morena a humildade. Jove é uma menina sofrida. Já a Anunciada a Iaiá, minha primeira esposa, apesar de gênio recatado, complicou tudo com o maldito orgulho; a Eulina, mãe dos meus três filhos, também. Não suportava esse deserto de Pedra e não quis me ajudar em nada. A Jove não, é muito boazinha. Não reclama nada... Ando com o pressentimento que ela vai ser a última mulher da minha vida.
- Bobagem, coronel. Não diga isso...
E de fato foi essa Juventina de Castro, pernambucana de 24 anos de idade, o último amor de sua vida, já que aos 20 de outubro de 1917, tombou Delmiro Gouveia na varanda da sua casa, assassinado por misteriosos inimigos.
Estava com 54 anos e já havia consolidado nos sertões alagoanos uma obra social de avançado estilo, criando Pedra, uma cidade-modelo, com água encanada, luz, conforto e higiene, além de escolas, creches, parques de diversões etc.
Verdadeiro Mauá dos nossos sertões, espécie de um Bernardo Sayão da nossa indústria, Delmiro Gouveia foi uma figura positiva, um verdadeiro dínamo propulsor de entusiasmos sociais e criadores na história econômica do Brasil na primeira década deste século. A ele o Nordeste deve seu grande impulso de libertação, seu primeiro gesto de industrialização total.
Órfão em plena infância, Delmiro Gouveia ainda menino deixou o Ceará, indo se criar no recife, onde inicialmente trabalhou nos trens suburbanos da Pernambuco Street Railway Company, chegando a ser chefe-de-estação.
Filho de pai boiadeiro, morto na guerra do Paraguai, Delmiro desenvolveu dentro de si impulsos heróicos e caminheiros, trazendo na massa do sangue o gérmen de um grande progressista comerciante.
Deixando os trens da velha Caxangá tornou-se negociante de peles de bode (seu grito de guerra era “fora do bode não há salvação”), chegando a ser, entre nós, o precursor do sistema dos supermercados de abastecimento, com a criação do Derbi, estabelecimento que foi incendiado pelos inimigos políticos enchendo a crônica recifense da época de espanto.
Casado com dama nobre, viaja para o estrangeiro e ganhando muito dinheiro, torna-se senhor respeitável, dono do solar “Vila Anunciada”, ditador da moda e de fidalgas maneiras.
A realização, porém, do seu destino estava nos sertões de Alagoas, onde tornou-se pioneiro na eletricidade, da grande indústria, da vila operária, da água encanada, da assistência social, do automóvel, das estradas, dos melhoramentos industriais e das diversões públicas.
Criador da indústria do bode, introduziu também o zebuamento bovino, a plantação da palma forrageira, a linha de coser, o cinema e a máquina de escrever, o futebol e a patinação, tudo isto no duro e viril sertão das pedras e dos cactos, dos homens e das mulheres merecidas.Foi, em todos os sentidos, um sertanista moderno, um pioneiro social dos mais avançados que tivemos em todos os tempos.
(*) Escritor, pesquisador.
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