
Para narrar a história desse extraordinário pioneiro, nascido no Ceará, de mãe pernambucana, já existe alentada bibliografia, com as obras de Tadeu Rocha (“Delmiro Gouveia – o Pioneiro de Paulo Afonso”), de Félix Lima (“Delmiro Gouveia – o Mauá do Sertão Alagoano”), de F. Magalhães Martins (“Delmiro Gouveia – Pioneiro e Nacionalista”), de Geraldo Sarno e Orlando Senna (“Coronel Delmiro Gouveia”). E estou certo de que não esgotei a lista dos livros que até agora lhe foram dedicados e a que serviu de inspiração.
Mas ainda havia alguns temas a desbravar. Delmiro Gouveia morreu assassinado , a 10 de abril de 1917, e circulavam diversas versões para explicar a autoria do delito, não somente quanto aos seus executores, como aos motivos que poderiam ter determinado a sua eliminação. Disputa de prestígio político? Vingança? Desagravo de pessoas a quem ele teria humilhado publicamente? Não faltou quem associasse o seu assassinato com os interesses e maquinações do truste estrangeiro que com ele concorria.
Um jornalista de Alagoas, Jorge Oliveira, teve oportunidade de ouvir um dos acusados da autoria do delito, e que pagou na prisão metade da pena de sua condenação, no júri a que foi submetido, juntamente com um suposto cúmplice que fugira da prisão e acabara vítima da própria polícia na operação de captura. Mas o condenado sobrevivente insistiu na revisão do processo, apresentando provas que foram acolhidas, e que resultaram na sua absolvição, em novo julgamento. Chamava-se ele Róseo Moraes do Nascimento. Duas vezes comparecera a júri, e duas vezes fora condenado a 30 anos de prisão, numa fase em que não se admitia que o assassinato de Delmiro Gouveia não tivesse responsável. Embora fossem processados os indiciados como simples mandatários, e executores de um crime, em que um presumido mandante, poderoso chefe político do sertão alagoano, não chegara a ser incomodado, muito menos punido. Cousa desse nosso Brasil dos “coronéis”.
De resto, toda a prova apresentada contra os réus consistia, apenas, na sua confissão. As provas circunstanciais eram irrelevantes. Mas havia necessidade de não deixar impune o assassinato de Delmiro Gouveia. Esta em causa a honra e o prestígio do Governo de Batista Acioli e da polícia a seu serviço.
E como se obtivera a confissão dos dois indiciados? O livro de Jorge Oliveira o relata fielmente. Foram trinta dias de torturas sistemáticas, a que não resistiria nenhuma criatura humana. Que vale, ainda hoje, para as autoridades policiais, o cidadão brasileiro? Que valeria a cinqüenta anos passados? O Major de polícia, encarregado das diligências, tinha toda a sua carreira dependendo do êxito com que correspondesse à confiança do Governador do Estado. Dois pobres diabos, trabalhadores de campo, se opunham a tão exigentes interesses. Havia que confessar, e acabaram confessando. Quem mandou valorizar a confissão na instrução dos processos criminais? Pois Beccaria já não nos havia advertido de que ela não passava de “um infame crisol da verdade”? Quando a tortura já é,em si mesma, um castigo, o pior dos castigos, concorrendo para a desintegração de uma personalidade, sob o peso de sofrimentos cruciantes. Não é por outras razões que sempre entendi que bastava fazer prova das torturas dos pacientes, para que merecessem absolvição imediata, fosse qual fosse o crime de que estivessem sendo acusados.. para que outra punição, se já haviam suportado, e sofrido, a maior de todas?
Esse é o objetivo deste livro de Jorge Oliveira: revelar as razões, e eu diria melhor, os sofrimentos, que levaram Róseo Moraes do Nascimento a confessar. Confessou a sua participação no assassinato de Delmiro Gouveia, como em qualquer outro crime que lhe fosse atribuído. Tanto ele como o cúmplice que haviam encontrado, José Inácio Pia, viram na confissão a única maneira de dar paradeiro à crueldade das torturas. Um caso em tudo e por tudo semelhante ao dos irmãos Naves, que acabaram confessando um crime que não existia, em face de um assassinato de que a vítima continuava viva, como se demonstrou com o seu aparecimento, passados muitos anos da instauração e da conclusão do processo. Há que divulgar fatos dessa natureza para que se forme, na consciência popular, uma reação necessária contra a utilização da tortura. Esse o grande mérito do livro de Jorge Oliveira.
(in “Eu Não Matei Delmiro Gouveia”, de Jorge Oliveira – Ed. SERGASA – 1984, Prefácio)
(*) Alexandre José Barbosa Lima Sobrinho, jornalista, ensaísta, historiador e político brasileiro, presidente da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) nasceu em Recife (PE) em 22.01.1897 e faleceu no Rio de Janeiro em 16.07.2000.
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