sábado, 22 de novembro de 2008

Tiros Revistos

08 de junho de 1983

Acusados de Matar Delmiro Gouveia São Absolvidos

Manoel Canabarro (*)

O coronel Delmiro Gouveia, pioneiro da industrialização do Nordeste e ferrenho adversário das multinacionais inglesas, lia tranqüilamente um jornal na noite de 10 de outubro de 1917, sentado no alpendre de seu pequeno chalé no município de Água Branca, Alagoas, quando foi fulminado por três tiros de carabina. Dois anos depois, os operários têxteis José Ignácio Pia e Róseo Moraes do Nascimento, demitidos de uma fábrica de Gouveia duas semanas antes do crime, foram condenados a trinta anos de prisão, apesar de sempre terem dito que eram inocentes. Pia morreu em 1924, baleado quando tentava fugir da prisão. Nascimento cumpriu quinze anos de pena, foi solto por bom comportamento e morreu em 1979, aos 86 anos, amargurado por ser chamado de “assassino” nas ruas de Maceió. No último dia 24, 63 anos depois do primeiro julgamento, os Juízes do Tribunal de Justiça de Alagoas entenderam que seus avós togados haviam cometido um erro – e absolveram postumamente Pia e Nascimento.
Poucos dias depois do crime, Pia e Nascimento foram capturados em Própria, Sergipe, pela polícia de Alagoas. Brutalmente torturados pelo capitão PM Pedro Nolasco da Silva, assinaram minuciosas confissões e apontaram como mandante do assassinato o coronel José Rodrigues de Lima, rival de Gouveia. Posteriormente os operários afirmaram perante o juiz que confessaram porque tinham medo de morrer e que, no dia em que Gouveia tombou morto, estavam trabalhando em Maroim, em Sergipe, distante 200 quilômetros de Água Branca. Sem meios de comprovar sua versão, Pia e Nascimento foram condenados, apelaram e, em 1922, num segundo julgamento, tiveram suas penas confirmadas.

TELEGRAMA NO ARQUIVO – Trabalhando no caso desde 1968, preso a uma promessa feita a Róseo do Nascimento, o advogado e professor universitário Pedro Aleixo Paes de Albuquerque, 46 anos, considerava virtualmente impossível, depois de mais de seis décadas, obter alguma prova material da inocência dos dois operários. Em agosto do ano passado, no entanto, a prova afinal surgiu, graças ao historiador e advogado Moacir Medeiros de Sant’Ana, 51 anos, diretor do Arquivo Público de Maceió. Ao pesquisar os documentos arquivados no cartório de Água Branca, Sant’Ana topou com o processo em que o coronel José Rodrigues de Lima era acusado de mentor intelectual do assassinato. Para provar sua inocência, Lima exibira no inquérito um telegrama do coronel Gonçalo Prado assegurando que Róseo do Nascimento e José Ignácio Pia estavam efetivamente em Maroim quando Delmiro Gouveia morreu.
De posse deste telegrama, que não apareceu em nenhum dos julgamentos de Pia e Nascimento, Paes de Albuquerque conseguiu a reabertura do caso e, agora, a absolvição dos réus por cinco votos a quatro. “Apesar de tudo, sempre confiei na Justiça”, dia a empregada doméstica Laurentina Moraes do Nascimento, 47 anos, filha de Róseo. “Só lamento que meu pai não esteja vivo para poder respirar aliviado e encarar os outros de frente.” Morando com seus quatro filhos numa pequena casa no bairro do Prado, na periferia de Maceió, Laurentina não pretende processar o Estado de Alagoas para pleitear uma indenização por perdas e danos a seu pai. “Eu só queria que a verdade fosse vitoriosa”, explica.

VITÓRIA PARCIAL – A verdade, porém, foi parcialmente vitoriosa, pois ainda persiste um mistério: quem assassinou Delmiro Gouveia? O mistério continuará a desafiar a argúcia dos historiadores. “Não existe revisão criminal em favor da sociedade, mas apenas em benefício do réu”, diz Paes de Albuquerque. “Por isso nunca mais será aberto um processo judicial para apurar a identidade dos criminosos.” De qualquer maneira, muitos livros de história que tratam da vida desse coronel de idéias nacionalistas, que utilizou a força hidráulica da Cachoeira de Paulo Afonso para gerar energia no território sob sua influência, terão de ser revistos, face a sentença do Tribunal de Alagoas. E o filme “Coronel Delmiro Gouveia”, dirigido por Geraldo Sarno e lançado em 1979, talvez merecesse algumas cenas adicionais que isentassem Pia e Nascimento de qualquer responsabilidade no assassinato do legendário coronel.

(*) Jornalista de Maceió (AL)

Iniciada a Revisão do Processo Delmiro

Recife, 25 de abril de 1982

Tadeu Rocha (*)

Acaba de ser requerida ao Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas a revisão do Processo Delmiro. Os descendentes de Róseo Morais do Nascimento (uma das vítimas inocentes da Polícia e da Justiça, incluído entre os autores materiais da morte violenta de Delmiro Gouveia) iniciaram a líder por intermédio do criminalista Antônio Aleixo de Albuquerque e do historiador Moacir Sant’Ana, ambos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil e, também, professores da Universidade Federal de Alagoas. Eles vão, provar, juridicamente, a verdade a que chegamos, sob o ponto de vista da Moral e da História, nos meados de 1972.
Pesquisas por nós iniciadas em Maceió, no mês de abril de 1968 e concluídas em Penedo e Aracaju, em maio e junho de 1972, permitiram que denunciássemos a existência de “erro jurídico no Processo Delmiro”, em página inteira do DIÁRIO DE PERNAMBUCO, edição de 20 de junho do mesmo ano.
Menos de cinco anos e meio a pós a nossa fundamentada denúncia, o historiador Moacir de Medeiros Sant’Ana descobriu no Arquivo Público de Alagoas importantes documentos sobre o hediondo crime do núcleo industrial da Pedra. O códice então descoberto data dos fins de 1918 e consta de um “conjunto de autos de perguntas formuladas pelo próprio secretário do Interior da época, dr. Manoel Moreira e Silva”, segundo declarações do historiador Moacir Sant’Ana ao Jornal de Alagoas, de 10 de dezembro de 1977.
No referido códice, figuram depoimentos de Firmino Rodrigues Pereira, Róseo Morais do Nascimento, José Inácio Pia, Joventina do Carmo, Ulysses Luna e Ângelo Gomes Lima, depoimentos que, inexplicavelmente, não foram apensos ao Processo Delmiro, então em andamento na Comarca de Água Branca, no sertão de Alagoas.

O CRIME DA PEDRA

No ano de 1917, Delmiro Gouveia não estava morando na casa-grande da fábrica da Pedra. Ele residia, então, num elegante chalé, existente no largo fronteiriço à fábrica, porém fora da cerca de arame do grande núcleo industrial sertanejo. Terminada a faina do dia 10 de outubro, numa quente quarta-feira de verão, o Pioneiro de Paulo Afonso recolheu-se ao chalé, onde jantou em companhia do seu compadre Firmino Rodrigues, com que m foi palestrar no alpendre lateral esquerdo da residência. Depois que seu compadre se retirou, Delmiro passou a ler jornais, sentado em uma cadeira de balanço, à luz de forte lâmpada elétrica.
Eram oito e meia da noite, quando três tiros de rifle ecoaram por toda a vila industrial da Pedra. Os tiros foram deflagrados de um corte ferroviário próximo ao chalé. José Alexandre Cordeiro (o jovem Zé Pó), que antes servira o jantar ao cel. Delmiro e seu convidado, foi encontrar o patrão gravemente ferido, agarrando-se nas cadeiras do alpendre. Muita gente acorreu à residência do chefe, que foi conduzido ao seu leito.
Gravemente ferido, Delmiro ainda recebeu socorros do médico da fábrica da Pedra, dr. José Maciel Pereira. Dos três tiros deflagrados contra o Pioneiro, uma bala varou-lhe o coração. Poucos minutos teve de vida aquele homem de belo porte e grande resistência física. Nos últimos alentos da existência terrena, Delmiro Gouveia fez a mais cristã das súplicas e mais nordestina das preces: “Valha-me Nossa Senhora!”. Esta prece foi ouvida pelo referido José Alexandre Cordeiro, segundo informações que nos prestou em fevereiro de 1953.
O grande comércio de peles de caprinos e ovinos, uma pecuária modernizada e a montagem da fábrica de linhas, com a extraordinária façanha do aproveitamento da cachoeira de Paulo Afonso, transformaram Delmiro Gouveia na maior autoridade dos sertões nordestinos. A inveja e o despeito não tardaram em criar duas sérias inimizades ao moderno sertanista: os “coronéis” José Rodrigues de Lima, de Piranhas, e seu parente José Gomes de Lima e Sá, residente em jatobá, hoje Petrolândia. O ódio dos dois parentes armou sicários, que nas caladas da noite abateram, traiçoeiramente, a mais importante figura da moderna História Econômica do Nordeste.

ÚLTIMOS AUSENTES

A confusão que se seguiu à morte violenta do Pioneiro de Paulo Afonso, na vila industrial da Pedra, foi indescritível. Fervilhavam os boatos e multiplicavam-se as insinuações sobre a autoria do crime, até que as hipóteses recaíram nos derradeiros ausentes do núcleo industrial. Entre estes, estavam os operários José Inácio Pia, que fora despedido da fábrica de linha pelo gerente Adolfo Santos, e seu compadre Róseo Morais do Nascimento, que pedira suas contas. E logo no dia 14 de outubro (uma semana após a morte de Delmiro) surgiram as primeiras acusações a estes derradeiros ausentes, ao que consta dos autos do Processo Delmiro.
Não foi difícil à Polícia Militar de Alagoas capturar os dois supostos assassinos de Delmiro Gouveia: o operário José Inácio Pia, apelidado de Jacaré, foi preso no dia 7 de novembro, em Própria, onde estava de volta à Pedra de Delmiro, para ir buscar sua mulher; quanto ao operário Róseo Morais do Nascimento, foi preso a 10 d novembro, na usina Pedras, onde estava empregado, no Município sergipano de Maruim. Noutro inquérito, feito um ano mais tarde, apareceu Antônio Felix do Nascimento como terceiro mandatário do crime de 10 de outubro de 1917.
A custa de violências de toda espécie, que iam do pistolamento às constantes ameaças de fuzilamento, o famigerado Capitão Nolasco, da Polícia alagoana, obteve de Jacaré e Róseo a “confissão” da autoria do crime... O mesmo processo foi utilizado em relação ao pernambucano Antônio Felix do nascimento, que não tinha qualquer parentesco com o cearense Róseo Morais do Nascimento. Denunciados pelo Ministério Público e pronunciados pela Justiça da Comarca de Água Branca, esses três humildes sertanejos foram submetidos a julgamento pelo tribunal do Júri daquela Comarca sendo condenados á pena máxima de 30 anos.

ÁLIBI VERAZ

Em nenhum processo criminal, a palavra álibi pode ter mais expressão do que no caso dos finados Róseo Morais do Nascimento e José Inácio Pia. O advérbio latino alibi significa – em outro lugar. Era, precisamente, em outro lugar, bem distante do núcleo industrial de Pedra, onde pernoitavam os dois antigos operários da fábrica de linhas, na noite em que Delmiro Gouveia foi covardemente assassinado. Chegamos a esta certeza absoluta, após dois anos e meio do lançamento , em 1970, da 3ª edição do nosso livro intitulado Delmiro Gouveia, mo Pioneiro de Paulo Afonso.
O álibi dos derradeiros ausentes da vila industrial da Pedra, antes do hediondo crime de 10 de outubro de 1917, não foi acreditado pela Polícia, nem pela Justiça, durante marcha do Processo Delmiro. Ao que dissemos, coube-nos a obrigação moral de fazer pesquisas sobre o assunto. E o fizemos como biógrafo de Delmiro Gouveia e filho de Manoel Rodrigues da Rocha, seu grande amigo e constante hospedeiro, em Santana do Ipanema. As nossas pesquisas concluíram pela veracidade do importante e desprezado álibi de Róseo Morais e José Inácio Pia.
Na última semana de setembro de 1917, eles pegaram o trem, na estação de Pedra, onde embarcaram para Propriá, logo nos primeiros dias de outubro. Desceram em S. Francisco na canoa Pirapora, em que também viajavam o industrial Manuel de Souza Brito e o cabo José Marinho de Melo Morais, do destacamento de Piranhas. Róseo e José Inácio pediram emprego ao cel. Neco Brito, que lhes ofereceu colocação em sua fábrica de tecidos em Própria. Na terça-feira, 9 de outubro, foram à residência do industrial, dizer-lhe que não aceitavam o emprego, por serem baixos os salários.
Na quarta-feira, dia 10, tomaram o trem de Própria a Aracaju, o qual pernoitou em Japaratubinha (hoje Muribeca) por motivo de avaria. No dia seguinte, o trem se arrastou até a estação mais próxima, que era o entroncamento ferroviário de Murta, onde se iniciava o ramal de Capela. Ali na estaco de Murta foi, então, que souberam da morte de Delmiro, transmitida pelos passageiros do trem da quinta-feira, saído de Própria. Viajando nessa data, 11 de outubro de 1917 os dois operários desceram na estação de Maruim dirigindo-se à usina Pedras, do “cel.” Gonçalo Prado, onde se empregaram como pedreiros.
Três fatos nos impressionaram profundamente, nos fins da nossa pesquisa sobre o importantíssimo álibi. No dia 4 de maio de 1972, em Penedo, a veneranda senhora Maria Etelvina Brito Andrade (filha do “cel.” Neco Brito) confessou-nos que foi ela mesmo quem escreveu o telegrama, ditado por seu pai, informando o “cel.” Ulysses Luna de que Róseo e Pia estavam em Propriá. No dia 9 de outubro de 1917. Ainda em penedo, o venerando José Correia de Figueiredo confirmou-nos ser voz corrente, em Água Branca, que os verdadeiros matadores de Delmiro Gouveia foram o agricultor Herculano Soares Vilela, seu cunhado Luis dos Anjicos e seu amigo Manuel Vaqueiro.E no dia 5 de junho do mesmo ano de 1972, em Aracaju, tivemos a grande ventura de conversas com o sr. Florival Garangáu, filho do famoso mecânico “mestre” Garangáu, que Róseo Morais do nascimento viu ser cego de um olho e ouviu discutir fortemente com o chefe da estação de Murta. O sr. Florival Garangáu nos garantiu que seu pai era, de fato, cego do olho esquerdo, era um homem valente e falava muito, “pois gostava de dizer a verdade”.
(*) Advogado, Escritor e Jornalista

Finalmente Desvendado o Mistério da Morte de Delmiro

Recife, 11 de junho de 1978


“Coronelismo” sertanejo eliminou Gouveia em 1917 e multinacional “matou” sua fábrica de linhas em 1929


Tadeu Rocha (*)


Delmiro Gouveia foi morto, no pioneiro núcleo industrial de Pedra (Alagoas), em 10 de outubro de 1917. A fábrica de linhas, que ele inaugurara em 1914 e seus herdeiros venderam em 1927 aos industriais recifenses Menezes Irmãos, foi condenada à morte no dia 2 de novembro de 1929, em Paisley, na Escócia.


Após 28 anos de pesquisas sobre a vida e a obra de Delmiro Gouveia, chegamos à absoluta certeza da autoria intelectual do crime que vitimou o Pioneiro de Paulo Afonso, acarretando um atraso de quarenta anos para uma grande parte do Nordeste.
As pesquisas que iniciamos em janeiro de 1950, na cidade alagoana de Santana do Ipanema, e que nos permitimos escrever inúmeras reportagens no DIÁRIO DE PERNAMBUCO, a partir de fevereiro de 1953, e publicar três edições de uma biografia do Pioneiro de Paulo Afonso, somente agora chega m ao seu termo, com seguro depoimento colhido no Estado de Goiás. Na cidade de Porto Nacional, em meados de 1948, um certo senhor Raimundo Lopes, idoso e doente, identificou-se como sendo, realmente, José Gomes de Sá e declarou, perante quatro testemunhas categorizadas, que foram ele e o “Coronel” José Rodrigues (de Piranhas) os mandantes da morte violenta de Delmiro Gouveia, no centro industrial da Pedra, na noite de 10 de outubro de 1917.

ERRO JUDICIÁRIO

Ainda no dia 16 de abril de 1967, aqui mesmo nas páginas do DIÁRIO, documentalmente revelamos que não houve “caso” de mulher no traiçoeiro assassínio do genial captador da força de Paulo Afonso. Cinco anos mais tarde, precisamente no DIÁRIO de 20 de julho de 1972, denunciamos a existência de “erro judiciário no Processo Delmiro”, provando que os operários sertanejos Róseo Morais do Nascimento e José Inácio Pia, apelidado de Jacaré, pernoitavam na estação ferroviária de Japaratubinha (hoje Muribeca), no interior de Sergipe, quando Delmiro foi assassinado, no centro industrial que ele mesmo fundara, no sertão de Alagoas.
Decorridos menos de cinco anos e meio da nossa denúncia pública (e confirmando o álibi do Sr. Róseo e do finado jacaré), o historiador Moacir Sant’na, diretor do Arquivo Público de Alagoas, descobriu em sua repartição um “conjunto de autos de perguntas”, referentes ao Processo Delmiro, mas que a ele nunca foram anexados, se bem que existentes desde os fins de 1918. O citado historiador tornou pública essa notável descoberta, numa entrevista ao Jornal de Alagoas, edição de 10 de dezembro do ano passado.

FONTE INESPERADA

Nos fins de 1977, fomos fazer novas pesquisas em Maceió, no Arquivo Público e no Instituto Histórico de Alagoas. Visitando o criminalista Antônio Aleixo Paes de Albuquerque, advogado do Sr. Róseo Morais do Nascimento, ele nos informou de que tivera ligeiro contato, na capital alagoana, com o Desembargador Lúcio Batista Arantes, presidente do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Este Desembargador mostrou interesse em conhecer melhor a vida e obra de Delmiro Gouveia, de quem ouvira falar por uma circunstância toda especial, no interior de Goiás, nos fins da década de 40.
Escrevemos ao ilustre magistrado, pedindo-lhe alguns dados sobre a vida do “Coronel” José Gomes de Lima e Sá, que se evadira de jatobá (hoje Petrolândia) e se refugiara no norte de Goiás, logo após a morte violenta do Pioneiro de Paulo Afonso. O Desembargador Batista Arantes confiou a resposta de nossa carta ao Dr. José Cortez de Lucena, que foi promotor Público em Goiás, tendo sido removido para a Comarca de Porto Nacional, pela Portaria nº 36, de 4 de maio de 1948, do Procurador Geral de Justiça daquele Estado.

AUTÊNTICO DEPOIMENTO

As informações do antigo Promotor Público de Porto Nacional constituem minucioso e autêntico depoimento, como veremos em seguida. Ainda em meio ou junho daquele ano, o Dr. Cortez de Lucena foi procurado pelo Pe. Luso, que também trabalhava em Porto Nacional, “para acompanhá-lo até uma das pensões daquela localidade, para assistir à confissão de uma pessoa que solicitava a presença do Dr. Promotor”.
Vejamos o depoimento do referido Promotor: “Lá chegando, deparei-me com um homem de idade um tanto avançada, contorcendo-se sobre uma cama, coberto de suor, que, apesar de ser ali conhecido por Raimundo Lopes, identificou-se como sendo José Gomes de Sá, que desejava morrer com sua consciência aliviada de um grande crime praticado contra a pessoa do Coronel Delmiro Gouveia, no lugar conhecido por Pedra do Coronel Delmiro, em Alagoas, e pelo qual estavam sofrendo três inocentes de nomes José Inácio Pia, vulgo Jacaré, Róseo Morais e Felix de Tal; que ele e José Rodrigues, de Piranhas, eram os únicos responsáveis”.
Concluindo o seu minucioso informe, escreve Dr. Cortez de Lucena: “tomada por termo a confissão, perante os testemunhos do padre luso, do advogado Oswaldo Leal e do fazendeiro Pedro Castanheira, foi dito documento concluso ao MM. Juiz de Direito da Comarca – Luiz do Couto Cornélio Brom – para ser encaminhado ao então Egrégio Tribunal de Apelação de Alagoas, para os devidos fins de Direito. O que julgo tenha acontecido”.
Esse termo de auto-identificação pessoal e confissão pública de José Gomes de Sá não foi encontrado no arquivo do tribunal de Justiça de Alagoas, ao que nos informou o Desembargador Hélio Rocha Cabral de Vasconcelos, em carta de 14 de abril deste ano. Como tem acontecido a muitos outros arquivos, o do Tribunal de Justiça alagoana também foi vítima da injúria do tempo e descaso dos homens.

SOBREVIVEM TESTEMUNHAS

Conseguimos saber o nome completo e o endereço atual do sacerdote que convidou o Dr. José Cortez de Lucena a testemunhar, com duas outras pessoas de categoria, a confissão pública do suposto Raimundo Lopes, nos meados de 1948. O nome desse padre é Luso Matos, que continua residindo em Porto nacional, conforme resposta telegráfica do Sr. Bispo daquela Diocese goiana, Dom Frei Celso Pereira de Almeida, ao Monsenhor Severino Nogueira.
Quanto ás duas outras testemunhas da confissão pública de Raimundo Lopes, que então revelou ser, na verdade, José Gomes de Sá, recebemos autorizada informação do Sr. Jurimar Macedo, Prefeito de Porto nacional. Em telegrama de 6 do corrente, ele esclarece: “advogado Oswaldo Leal já falecido vg Pedro castanheira reside em Pium”, que é uma cidade vizinha a Porto Nacional, na Microrregião Médio Tocantins-Araguaia, no Estado de Goiás.

CRIME TRAIÇOEIRO E BEM PLANEJADO

Os “coronéis” José Rodrigues de lima e José Gomes de Lima e Sá estavam estrategicamente situados nas extremidades da Estrada de Ferro Paulo Afonso, o primeiro em piranhas, no estado de alagoas, e o segundo em jatobá, no território pernambucano. A meio caminho, no km 54 dessa ferrovia, Delmiro Gouveia fundara o núcleo industrial da pedra, que ele próprio dirigia autoritariamente, como todos os civilizados dores de terras ou apóstolos de almas. Por isso mesmo, os dois inimigos do sertanista moderno encontraram, facilmente, quem o eliminasse.
Os “Coronéis” José Gomes e José Rodrigues aproveitaram-se do ódio que votava a Delmiro o pequeno agricultor Herculano Soares Vilela, em um sítio na Serra do Cavalo, perto da cidade de água Branca. Os dois mandantes do crime forneceram as armas e o “serviço” foi feito com precisão, pelo próprio Herculano, seu cunhado Luiz dos Angicos e seu “cabra” Manuel Vaqueiro. O crime foi traiçoeiro e rápido, às oito e meia da noite de 10 de outubro de 1917. Sabe-se que o agricultor Herculano confessou a autoria material do crime, antes de morrer. Entretanto, os seus familiares jamais quiseram dar testemunho sobre essa revelação.

SENTENÇA DE MORTE À LINHA “ESTRELA”

Antes que a finança internacional pretendesse matar Delmiro Gouveia, o “coronelismo” nordestino o eliminou. Decorridos 12 anos da morte do Pioneiro de Paulo Afonso, a Machine Cottons conseguiu fechar a fábrica de linhas da Pedra, através de um contrato firmado em Pais-Ley, na Escóssia, exatamente no dia de Finados do ano da Graça de 1929.
Foi o que dissemos e documentamos no capítulo Sentença de Morte à Linha “Estrela”, de nosso livro DELMIRO GOUVEIA, O PIONEIRO DE PAULO AFONSO.Essa fábrica de linhas, inaugurada por Delmiro Gouveia em 6 de junho de 1914, foi vendida por seus herdeiros , em 7 de maio de 1927, aos industriais recifenses Menezes Irmãos. Sem o apoio do Presidente Washington Luís e do Congresso Nacional, os Meneses foram obrigados a aceitar a pena de morte contra a sua indústria de linhas, decretada na Escócia, no dia de Finados do ano de 1929.

(*) Advogado, Escritor e Jornalista.

Uma das Primeiras Vítimas de Interesses Estrangeiros

07 de março de 1985

O cearense Delmiro Gouveia ligou-se ao comércio ainda jovem, exportando peles, algodão, mamona e couro de bois. Mais tarde, em recife, construiu o mercado do Derby, vendendo carne verde e farinha de mandioca a preços inferiores aos dos concorrentes. Foi em Pedra, no sertão alagoano, que a visão comercial e o espírito empreendedor de Delmiro Gouveia projetaram a captação de energia elétrica da cachoeira de Paulo Afonso para utilização numa fábrica de linhas de costura, a Cia. Agro-fabril Mercantil, inaugurada em 6 de junho der 1914. Nessa época, a Machine Cottons – grupo inglês produtor das linhas Corrente – detinha o monopólio do mercado sul-americano. A primeira Guerra Mundial (1914-1918) impediu a chegada dos produtos ingleses à América do Sul, possibilitando à Cia. Agro-Fabril Mercantil a conquista desse mercado, principalmente o brasileiro. Pressionado pelo poderoso truste inglês, Delmiro Gouveia resistiu com firmeza, até ser assassinado em 10 de outubro de 1917.
O crime nunca foi esclarecido. Os mandantes e verdadeiros assassinos do coronel Delmiro Gouveia ficaram impunes. Dois operários da Fábrica da Pedra – Róseo Morais do Nascimento e José Inácio Pia, o popular Jacaré – e um desocupado Antônio Felix do Nascimento foram apontados como os criminosos, e, brutalmente torturados, sendo condenados a 30 anos de prisão. José Inácio fugiu da prisão e morreu num tiroteio com a polícia, em 1924. Antônio Felix foi assassinado em 1953, depois de ter cumprido sua sentença. Róseo Morais do Nascimento cumpriu metade da pena e saiu da penitenciária de Maceió em 1932, amargurado por ser chamado de assassino. Iniciou, então, um longo processo para tentar provar sua inocência, concluído por sua filha Laurentina Morais do Nascimento, após sua morte em 1979. Finalmente, em 1983, o Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas absolvei postumamente Róseo Morais do Nascimento, levando em consideração um telegrama – localizado pelo historiador Moacir Medeiros de Santana e juntado aos autos pelo advogado Antônio Aleixo Paes de Albuquerque – em que o coronel Gonçalo Prado assegurava que Róseo e José Inácio Pia estavam em Maroim (SE) no dia em que Delmiro Gouveia foi assassinado.
A partir de um depoimento de Róseo Morais do Nascimento, obtido em 1975, o jornalista alagoano Jorge Oliveira – ganhador do Prêmio Esso de Jornalismo 1980 – escreveu Eu não Matei Delmiro Gouveia, livro-reportagem apresentado por Barbosa Lima Sobrinho que revela os detalhes do “maior erro judiciário no Brasil”. “As versões sobre os verdadeiros criminosos – diz Jorge Oliveira no começo da obra – ainda são flagrantemente contraditórias – mesmo porque o álibi apresentado por Róseo Moraes do Nascimento até meio de 1983 era considerado, pelas Justiça alagoana, ‘irrelevante’. Quanto aos autores intelectuais da morte do coronel, as suspeitas caíram sempre na Machine Cottons, fábrica inglesa de linhas de costura concorrente de Delmiro Gouveia no Brasil e em outros países da América do Sul. Os galegos da fábrica inglesa – como eram chamados os trustes na época, início do século – teriam-se aproveitado de algumas desavenças de Delmiro Gouveia com chefes políticos locais, para liquida-lo, através de terceiros, e desativar seu poderia econômico no País. Nesse jogo sujo de interesses, os dois lavradores humildes e indefesos foram envolvidos”.
Foi o próprio Governador do Estado de Alagoas, Batista Acyolli, quem indicou o Capitão da PM Pedro Nolasco da Silva (“homem bruto, carrancudo, torturador conhecido”) para chefiar as investigações do assassinato der Delmiro Gouveia, exigindo a prisão dos criminosos “de qualquer maneira”. Saindo de Maceió com 20 soldados, o Capitão Nolasco chegou a Pedra e, após espancar inocentes e alvoroçar a cidade, apresentou o primeiro suspeito: José Inácio Pia, o Jacaré, que negou de joelhos a autoria do crime, a legando que no dia do assassinato estava viajando de trem em direção a Sergipe. Baseado no depoimento de Róseo, Jorge Oliveira relata as primeiras torturas que Jacaré sofre: “No primeiro soco, Jacaré desequilibrou-se e caiu desacordado no cimento frio do armazém. As botinas dos soldados de Nolasco esmagavam o corpo de Jacaré. Os homens do capitão amassavam Jacaré como quem amassa barro para fazer tijolos. Com a cara ensangüentada e marcada pelos socos, Jacaré estremecia no chão, via, em logos jatos, seu sangue misturar-se à lama do piso molhado do armazém. Nolasco, cansado, fazia breves intervalos. Passava o comando a seus policiais. Com um saco de estopa amarrado à boca, os gritos de Jacaré eram abafados”.
Logo em seguida o Capitão Nolasco prenderia Róseo em Maroim (SE), onde estava morando e trabalhando, acusando-o de cúmplice de jacaré. Róseo teve todos os seus dentes arrancados pelas coronhadas que recebeu, no rosto, do fuzil do sargento Cunha, e também foi barbaramente torturado. Os dois acusados receberam, inclusive, chibatadas de bimbas de boi, seguidas de banho com água com sal grosso. Róseo recorda os maus-tratos: “Me deram uma surra de palmatória na sola dos pés que ainda hoje engrossa o couro. Depois me amarraram com corrente. Ao meu lado colocaram um pedaço de bacalhau. Para matar a fome e eu era obrigado a mastigar o bacalhau, quando pedia água, era espancado”. Após 30 dias de torturas. Róseo e Jacaré, desnutridos, esgotados e famintos, “confessaram” o crime que não cometeram para se livrarem das torturas.
Concluído o inquérito, o processo começou a ser manipulado, conforme conta o autor: “Havia uma tendência muito clara a que as suas principais peças, especialmente as que foram fornecidas à Justiça por testemunhas-chaves, inocentando os dois acusados, desaparecesse, o que permitia, a quem desejasse, retirar qualquer peça do inquérito sem alterá-lo. Para que isso fosse facilitado, as folhas não foram numeradas. Assim é que dois importantes documentos sumiram. Apenas um apareceu mais de 50 Anos depois, usado para inocentar Róseo, em 1983. Agora, o processo será arquivado porque ninguém pode ser condenado duas vezes pelo mesmo crime. Os verdadeiros criminosos estão isento de qualquer condenação”.
O primeiro julgamento de Róseo e jacaré ocorreu em agosto de 1919. Jorge Oliveira, apoiado no depoimento de Róseo, descreve a viagem dos acusados de Pedra para Água Branca:
“Depois do meio-dia, Nolasco autorizou a viagem. Puxados pelos policiais, Róseo e Jacaré iniciaram, a pé a longa viagem até Água Branca. Os policiais viajavam em lombo de burro. Róseo e Jacaré, acorrentados, eram puxados e arrastados. Quando caiam, continuavam puxados até se reerguerem num esforço sobre-humano”.
Ameaçados pelo Capitão Nolasco (“Cabras, em Juízo vocês tem que confirmar que mataram o Coronel Delmiro, senão mato os dois na volta e enterro aqui mesmo”), os réus confirmaram os depoimentos anteriores e foram condenados a 30 anos der prisão. Alegando uma série de irregularidades no processo, entre elas a inexistência de testemunhas que tivessem presenciado Róseo e Jacaré matarem o Coronel Delmiro Gouveia, o advogado Linduarte Villar apelou da sentença. Surpreendentemente, no segundo julgamento, surgiu um terceiro réu: Antônio Felix do Nascimento, que teria sido indicado por interesses políticos. O Tenente João Medeiros, com seis policiais, conduziu os três presos de Pedra a Água Branca, recusando um suborno para dar sumiço neles e garantindo suas vidas até entrega-las na penitenciária de Maceió, ao terem sido condenados a 30 anos de prisão no novo julgamento.
O jornalista Jorge Oliveira também entrevistou o Tenente João Medeiros, em 1976, que relembrou uma frase pronunciada por Róseo, a caminho de Água Branca: “Seu Tenente, o senhor pode crer por Nosso Senhor Jesus Cristo e a Virgem Maria que nós tamo pagando por uma coisa injusta”. O Tenente João Medeiros, temeroso, preferiu omitir o nome da pessoa que tentou suborná-lo: “Ainda hoje está viva muita gente desse caso, muita gente envolvida diretamente na morte do Coronel Delmiro Gouveia. Eu também ainda quero viver um pouco mais”. Instado pelo jornalista, disse quem matou o industrial Delmiro Gouveia: “Foi realmente Herculano Vilela, por vingança, porque antes tivera uma briga com o industrial. Mas quem organizou tudo foi o Firmino Rodrigues. Agora, quem foi junto com Herculano para matar o Coronel Delmiro ainda não morreu”.
Jorge Oliveira chegou aos verdadeiros autores do crime: “Em 1960, pouco antes de morrer, Herculano Soares Vilela confessou a seu amigos, num sítio em Satuba, Alagoas, ter matado Delmiro Gouveia, juntamente com seu cunhado Luis dos Angicos e o amigo Manuel Vaqueiro, também já falecidos”. Em Eu não matei Delmiro Gouveia, Jorge Oliveira, como diz o jornalista Mauricio Azedo na orelha do livro, “fez de seu ofício de repórter, mais uma vez um instrumento de afirmação da verdade”, comprovando a inocência de vítimas do arbítrio e indicando os verdadeiros autores do assassinado do Coronel Delmiro Gouveia – industrial nacionalista e progressista que enfrentou as multinacionais inglesas, tanta vezes louvado – ao lado dos conterrâneos Antônio Conselheiro e Padre Cícero – pelos poetas populares, como nesses versos anônimos, citados por Jorge Oliveira:
Quando o enterro de Delmiro
Foi pela rua passando
Parece que a gente ouvia
A cachoeira chorando.

O Desafiador de Pedra

Recife, 09 de outubro de 1977

Editorial

A sessenta anos do desaparecimento, por assassinato, do coronel Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, ainda impressionam depoimentos como o de Oliveira lima, por exemplo, de que nas brenhas de muito antes da atual Paulo Afonso, agora distribuindo energia para o Nordeste quase todo, Delmiro Gouveia “realizou o ideal democrático do ensino gratuito, leigo e compulsório”. A figura monumentalesca deste nordestino determinado e turbulentamente inovador ainda hoje se permite impelir para o futuro como anúncio das benesses que a civilização e a técnica alcançam promover através de individualidades exceção, como certamente foi aquele fabuloso sertanejo.
Colocando-se à parte certos resíduos míticos em torno de suas modestíssimas origens – a sediça história, usada sempre com respeito a triunfadores, do amarelinho que escondia turuna, e do menino paupérrimo que se fez governador – Delmiro trouxe forças dentro do seu ego inteiramente extraordinárias para a época em que, logrou desempenha-las e exercita-las. Para atingir ou desfrutar o máximo de sua capacidade pioneira e realizadora é claro que não se improvisou. Ganhou dinheiro, viajou, conheceu as coisas importantes das sociedades que se adiantam, foi um “rei dos courinhos” – como escreveu o nosso citado OL – comparável aos reis industriais do petróleo, do aço, do trigo, do açúcar – os Rockfeller, Schwab, Leiter, Hevemeyer, entronizados no fascínio e no declínio da chamada “belle époque”. Mais até: um permanente desafiador, foi romântico e espadachim.
Em Pernambuco – no Recife – em fase agitadíssima alarmou pela ousadia de empreendimentos nem sempre considerados ou julgados por aquela unanimidade ideal. Mas desfilou indiferente e decidido nos altos círculos do comércio, da política, do mundanismo, ou “society”.
Quando se destinou a Alagoas para aventura insólita de edificar uma indústria moderna e modernizante – como chegou a ser sua fábrica de linhas na famosa Pedra – em meio a “coronéis” e rurais proprietários absolutamente ligados à rotina e cegueira patriarcal, Delmiro já se armara de lúcida vontade e tinha coisas e modelos na cabeça com pretensões irreversíveis de execução.
Invulgar como tipo, ele acreditava não apenas nos seus próprios desígnios, mas também no milagre do potencial do homem quando dirigido com sabedoria, equidade, justiça e respeito humano e social. Sua experiência na Pedra – a maneira e sistema dotados para levar a cabo um modelo de comunidade capitalísticamente produtiva e armada de relacionamentos sociais disciplinados e tendentes ao mais justo equilíbrio – pode ser adotada domo uma exemplar tentativa de conciliação para os conflitos ainda persistentes em nossa filosofia ocidental de organização de trabalho, não fossem certo acento reconhecidamente feudalista com que impunha a sua autoridade de comando. Ele era, ao mesmo tempo, juiz e polícia, governo e senhor, numa comunidade em que até missionários ou religiosos tinha dia e hora marcados para penetrar e pregar às gentes de sua empresa.
Está fazendo 60 anos que tombou fulminado por um tiro de emboscada. Em torno de sua morte têm circulado lendas e versões até hoje, porém, de discutíveis confirmações. Pois é sobre estes derradeiros aspectos de sua edificante vida de trabalhador e crente dos valores humanos, que o DIÁRIO publica em sua edição de hoje reportagem a respeito – do mesmo Tadeu rocha.
Vale conhece-la, lê-la. É mais um documento sobre a existência exemplar de um nordestino assassinado pela ambição de desenvolvimento de que todos ainda nos tomamos em nossa região.

Há 60 Anos

Recife, 09 de outubro de 1977

Assassinado Delmiro Gouveia, o Pioneiro de Paulo Afonso

Tadeu Rocha (*)

Está fazendo 60 anos que se cometeu um dos mais hediondos crimes da História do Nordeste: a traiçoeira morte de Delmiro Gouveia, o Pioneiro de Paulo Afonso. Pioneiro não só na conservação da força dessa cachoeira em energia elétrica, mas também do alto comércio de peles de bode e carneiro, da pecuária moderna, da palma forrageira, do zebuamento bovino, da água encanada, da grande indústria, da máquina de escrever, da vila operária, da assistência social, das estradas de rodagem, do automóvel, do gelo, do cinema, da patinação e do futebol no sertão nordestino.

CRIME TRAIÇOEIRO EM NOITE DE VERÃO

No ano de 1917, Delmiro Gouveia não estava morando na casa-grande da Fábrica da Pedra. Ele residia, então, num elegante chalé, que o dentista Aloísio Cravo mandara construir no largo fronteiro à Fábrica, porém fora da cerca de arame do grande núcleo industrial. Terminada a faina do dia 10 de outubro, uma quente quarta-feira de verão, o Pioneiro recolheu-se ao chalé, onde jantou em companhia do seu compadre Firmino Rodrigues, com quem foi palestrar no alpendre lateral esquerdo da residência. Depois que seu compadre se estirou, Delmiro passou a ler jornais, sentado em uma cadeira de balanço, à luz de forte lâmpada elétrica.
Eram oito e meia da noite, quando três tiros de rifles ecoaram por toda a vila industrial da Pedra. Os tiros foram deflagrados de um corte ferroviário próximo ao chalé. José Alexandre Cordeiro (o jovem Zé Pó), que pouco antes servira o jantar ao Coronel Delmiro e seu convidado, foi encontrar o patrão gravemente ferido, agarrando-se nas cadeiras do alpendre. Muita gente acorreu á residência do chefe, que foi conduzido a seu leito.
Gravemente ferido, Delmiro ainda recebeu socorros do médico da Fábrica da Pedra, Dr. José Maciel Pereira. Dos três tiros deflagrados, duas balas o atingiram, sendo que uma lhe varou o coração. Poucos minutos teve de vida aquele homem de belo porte e grande resistência física e moral. Nos últimos alentos da existência terrena, Delmiro Gouveia fez a mais cristã das súplicas, e a mais nordestina das preces: “Valha-me Nossa Senhora!” Às 20 horas e 40 minutos, rendeu sua alma ao Criador. Estes preciosos informes nos foram dados, em fevereiro de 1953, pelo referido José Alexandre Cordeiro, fiel empregado doméstico de Delmiro Gouveia, desde 1903 até a morte do seu patrão, na trágica noite de 10 de outubro de 1917.

INVEJA E DESPEITO GERARAM A TRAGÉDIA

O grande comércio de peles de caprinos e ovinos, uma pecuária modernizada e a montagem da fábrica de linhas, com a extraordinária façanha do aproveitamento da cachoeira de Paulo Afonso, transformaram Delmiro Gouveia na maior autoridade social dos sertões nordestinos. O novo Coronel, emigrado do alto comércio recifense, tinha enorme prestígio econômico da região e prestígio político no Estado de Alagoas, o qual também se estendeu a Pernambuco, quando, o General Dantas Barreto, “derrubou” a oligarquia do Conselheiro Rosa e Silva. Para o povo em geral, o Pioneiro, de Paulo Afonso era um verdadeiro herói, por ter domado a famosa cachoeira do S. Francisco.
A inveja e o despeito não tardaram em criar duas sérias inimizades ao moderno sertanista. Interesses políticos e econômicos contrariados tornaram o Cel. José Gomes de Lima e Sá, residente em Jatobá, hoje Petrolandia, um inimigo rancoroso de Delmiro. Na outra extremidade da Estrada de Ferro Paulo Afonso, em Piranhas, o Cel. José Rodrigues de Lima, parente do primeiro, também se desentendeu com Delmiro , por questões de terras. O ódio dos dois parentes armou sicários que, nas caladas da noite, abateram traiçoeiramente, em sua casa, a mais importante figura da moderna História Econômica do Nordeste.
Nos dois processos instaurados na Comarca alagoana de Água Branca, apareceram como mandantes do hediondo crime os Coronéis José Rodrigues de Lima e José Gomes de Lima e Sá. O Coronel José Rodrigues acobertou-se com as “imunidades” de chefe político do Município de Piranhas, as quais logo se converteram em imunidades parlamentares, do deputado Estadual. Por isso, ele nem chegou a ser denunciado pela Promotoria Pública daquela Comarca. Em conseqüência de oura inimizade, foi assassinado em Maceió, a 28 de agosto de 1927.
Quando o Cel. José Gomes foi denunciado e pronunciado em Água Branca, mas se refugiou no interior do Goiás, onde nunca chegou a ser incomodado pela Justiça de Alagoas. Decorridos muitos anos, já em 1936, foi assassinado na cidade de goiana de Peixe, por questões de família. O certo, porém, é que o crime mandado praticar por esses dois atrasados Coronéis sertanejos, não atingiu apenas o genial Delmiro Gouveia: a bala, que lhe varou o coração, também, atingiu o próprio coração do Nordeste, onde o Pioneiro de Paulo Afonso fizera brotar a nova civilização industrial.
A confusão que se seguiu a morte violenta do Pioneiro de Paulo Afonso, na vila industrial de Pedra, foi indescritível. A inconcebível realidade foi por demais chocante e as diversas patrulhas, que logo se organizaram para capturar os executores do nefando crime, não surtiram qualquer efeito. Fervilhavam os boatos e multiplicavam-se as insinuações sobre a autoria material do crime, até que as hipóteses recaíram nos derradeiros ausentes do núcleo industrial. Entre estes, estavam os operários José Inácio Pia, que fora despedido da fábrica de linhas, e seu compadre Róseo Morais do nascimento, que pedira suas contas.
Na casa da Ruía Rui Barbosa, na vila operária da Pedra, onde haviam residido Róseo, que era solteiro, e José Inácio Pia, casado, somente permaneciam a esposa e sogra deste último. E logo no dia 14 de outubro, ao que consta dos autos do Processo Delmiro, surgiram as primeiras acusações a esses derradeiros ausentes. Não foi difícil à Polícia Militar de Alagoas capturar os supostos assassinos de Delmiro, permitindo ao Governo do Estado justificar-se perante a opinião pública do Nordeste e de todo o Brasil.
José Inácio Pia, apelidado de Jacaré, foi preso no dia 7 de novembro, em Própria, onde estava em transito, de volta á Pedra, para ir buscar sua mulher. Naquela cidade, ele fora protestar sua inocência no quartel da Polícia sergipana, onde se abrigou. Quanto ao seu compadre Róseo, Jacaré informou que ele estava trabalhando na usina Pedras, no Município de Maruim, onde foi preso a 10 de novembro. Noutro inquérito, feito um ano mais tarde, apareceu Antonio Felix do Nascimento como terceiro mandatário do crime de 10 de outubro de 1917.
À custa de violência de toda espécie, que iam do pistolamento às constantes ameaças de fuzilamento, o famigerado Capitão Nolasco obteve de Jacaré e Róseo a “confissão” da autoria do crime... O mesmo processo foi utilizado em relação ao pernambucano Antônio Felix do Nascimento, que não tinha qualquer parentesco com o cearense Róseo Morais do Nascimento. Denunciados e pronunciados, esses três humildes sertanejos foram submetidos a julgamento pelo Tribunal do Júri de Água Branca, em 22 de agosto de 1919, que os condenou à pena de 30 manos, confirmada por um segundo julgamento, realizado e, 9 de fevereiro de 1922.

ERRO JUDICIÁRIO

Após 22 anos de pesquisas sobre a vida e a obra de Delmiro Gouveia e dois anos e meio depois do lançamento da terceira edição do nosso ensaio sobre o Pioneiro de Paulo Afonso, chegamos à conclusão de que Róseo Morais do nascimento e José Inácio Pia (vulgo Jacaré) foram vítimas de erro judiciário no Processo Delmiro.
Na última semana de setembro de 1917, eles pegaram o trem, na estação da Pedra, e foram até Piranhas, onde embarcaram para Própria, logo nos primeiros dias de outubro. Desceram em S. Francisco na canoa Pirapora, em que também viajavam o industrial Manoel de Souza Brito e o cabo José Marinho de Melo Morais, do destacamento de Piranhas. Róseo e Jacaré pediram emprego ao Cel. Neco Brito, que lhes ofereceu colocação em sai fábrica de tecidos, de Própria. Na terça-feira, 9 de outubro, foram despedir-se do industrial e dizer-lhe que não aceitavam o emprego. Por serem baios os salários.
Na quarta-feira, dia 10, tomaram o trem da Própria a Aracaju, o qual pernoitou em Japaratubinha, hoje Muribeca, por motivo de avaria. No dia seguinte, o trem se arrastou até a estação mais próxima, que era o entroncamento ferroviário de Murta, onde se iniciava o ramal de Capela. Ali na estação de Murta foi, então, que souberam da morte de Delmiro, transmitida pelos passageiros do trem da quinta-feira, saído de Propriá. Róseo e jacaré desceram na estação de Maruim, dirigindo-se à usina Pedras onde se empregaram como pedreiros.
Cerca de um mês depois, quando Jacaré voltou a Propriá, com destino à vila operária da Pedra (para ir buscar sua mulher), soube que ele e Róseo estavam sendo apontados como matadores de Delmiro. Nova,ente procurou o Cel. Neco Brito, em sua própria residência. A seu pedido, o Cel. Manuel de Souza Brito passou um telegrama ao Coronel Ulisses Luna, de Água Branca, informando que Jacaré e Róseo não poderiam ser os assassinos de Delmiro Gouveia, pois na véspera do dia 10 de outubro eles estavam em Propriá. Esse telegrama foi ditado pelo Cel. Neco Brito a sua filha Maria Etelvina (a jovem Lili), que o escreveu, e foi recebido pelo Cel. Ulisses Luna, quer o mandou entregar às autoridades encarregadas do inquérito policial, às quais lhe deram destino ignorado. Tão decisivo documento não consta do Processo Delmiro, ao que verificamos no cuidadoso exame dos seus dois volumes.
Em nossa longa e continuada pesquisa sobre a vida e a obra de Delmiro Gouveia (que iniciamos em janeiro de 1950 e ainda não demos por terminada), nenhum elemento conseguimos a respeito da inocência de Antônio Felix do Nascimento, o suposto terceiro mandatário do crime. No sertão do submédio S. Francisco, em Alagoas e Pernambuco, muita gente afirma que ele também “confessou” o crime à custa de grandes torturas, por parte das autoridades policiais alagoanas. Já nos meados de 1953, soubemos que se falava em Água Branca ter sido um dos assassinos de Delmiro o agricultor Herculano Soares Vilela, que tempos antes tivera um sério atrito com o Pioneiro, numa rua daquela cidade. Somente na década de 60 foi que o Sr. Cícero Torres, então Deputado Estadual e hoje Conselheiro aposentado do Tribunal de Contas de Alagoas, fez declarações públicas sobre a culpabilidade de Herculano Vilela na morte de Delmiro. Posteriormente, o Sr. Cícero Torres, neto dobarão de Água Branca, reafirmou essas declarações, em inquérito judicial. Depondo na mesma inquirição, o venerando Sr. José Correia de Figueiredo, genro do Coronel Ulisses Luna, declarou “que era voz corrente em Água Branca que a autoria material do crime cabia a Herculano Soares e seu cunhado Luiz dos Angicos, e Manuel Vaqueiro”. Também se diz em Água Branca, que Herculano Soares Vilela, na hora da morte, revelou o segredo a seus familiares, que se negam a dar testemunho dessa importante confissão.

(*) Advogado, Escritor e Jornalista nascido em Santana do Ipanema (AL).

Assassinado o Cel. Delmiro Gouveia

Mossoró, 17 de outubro de 1917

Acaba de ser assassinado em Alagoas, o Cel. Delmiro Gouveia, chefe da conceituada firma Iona & Cia., e proprietário da Fábrica de linha da Pedra, pelo extinto fundada, não há muitos anos, naquele próspero Estado.
O Cel. Demiro que foi um dos maiores incrementadores da exportação de peles e de outros produtos do país, no norte do Brasil, era muito conhecido em nosso meio comercial, onde contava com afeições bem sinceras entre as quais a do Cel. Miguel Monte a quem, pelas firmas Iona foi logo transmitida a notícia do fatal evento.

Nota: a coluna "Mossoró no Passado" republicou esta matéria em 17.07.1973.

O Homem Que Fustigou os Cavalos Adormecidos em Sono de Séculos

Rio de Janeiro, 23 de setembro de 1977

Fernando Ferreira (*)

“Jornal do Sertão”, “Casa de farinha”, “Viva Cariri”, “Segunda feira”, “Casa grande e senzala” são alguns dos títulos da importante carreira do cineasta Geraldo Sarno, como documentarista do Nordeste brasileiro. É forte a corrente que o considera inexcedível nesse campo, onde faz arte e ciência com uma absoluta honestidade e uma tranqüilidade clarividência. Seus são alguns dos mais belos e mais límpidos documentários que se fazem atualmente no mundo. Essas qualidades não se antegorizaram com seu primeiro longa-metragem de ficção – “O sítio do pica pau amarelo” – onde fez um Lobato parecido com os filmes de Geraldo Sarno e por isto muita gente torceu o nariz.
Depois de realizar um admirável trabalho de documentação de terreiros de candomblé, na Bahia (o filme “Iaô”, premiado no último festival de Brasília), Geraldo ocupou todo o tempo dos últimos meses num longa-metragem sobre a vida de Delmiro Gouveia, o homem que primeiro fustigou os cavalos adormecidos, em sono de séculos, da cachoeira de Paulo Afonso, na expressão de Graciliano Ramos. De origem modesta, Delmiro Gouveia, que nasceu em 1863, foi um inovador audacioso no comércio do Recife e, posteriormente, quando obrigado por perseguição política a refugiar-se no interior de Alagoas, um empresário e industrial que enxergava muito adiante do seu tempo. Extraiu energia das águas do São Francisco: montou uma fábrica de linhas e de tecidos; construiu moderníssima vila operária, buscando mão de obra entre os camponeses do Sertão; organizou, com energia inflexível, um modelo de sociedade de trabalho; abriu estradas; dotou de luz a cidade de Pedra (hoje Delmiro Gouveia, em Alagoas), que encontrara paupérrima, em 1903, antes que Recife se despedisse dos lampiões de gás; enfrentou com altivez e intransigência os concorrentes estrangeiros do seu negócio. E sonhou com muito mais, até que o mataram, em 1917, sem que até hoje o crime tenha sido convincentemente esclarecido.
O cineasta que mais documentou o Sertão do Nordeste brasileiro, muito naturalmente desejou contar a história de Delmiro Gouveia. E o encontro de quem tanto recolheu a imagem do desenvolvimento com alguém que terá pretendido, quem sabe, supera-lo com indômita disposição. Geraldo Sarno ultima nestes dias, seu longa-metragem de ficção “Delmiro Gouveia”. Um dos filmes brasileiros do qual mais se deve esperar pelo que contém de talento, de verdade e emoção muito nossa. Geraldo e Rubens de Falco, diretor e ator, falam do filme que fizeram juntos.

Geraldo Sarno: atiraram no homem para matar a fábrica. Não se sabe quem foi.

FF - Geraldo, como se explica que haja uma tão grande desinformação sobre a figura histórica de Delmiro Gouveia?
GS - Existe um autor, um dos vários biógrafos de Delmiro, que chega a contar que, em torno da figura do Delmiro, exista uma “conspiração do silêncio”. Ele usa exatamente esta expressão. Dizer que existe alguma coisa de orquestrado neste sentido, é difícil de afirmar. Mas não deixa de ser estranho que uma figura da importância que ele tem, seja tão desconhecida no País. Eu mesmo tive o meu primeiro contato com a figura do Delmiro quando me encontrava no Nordeste, fazendo documentários, com o Affonso Beato e o Thomas Farkas, e que cheguei a primeira vez em Paulo Afonso, a cachoeira, e lá vi a usininha pendurado no penhasco do outro lado de Alagoas. E informando-me do que se tratava, soube que tinha sido a primeira usina feita em Paulo Afonso, no início do século, por um cara que tinha sido assassinado, que tinha uma fábrica de linhas de costurar. E foi assim, por acaso, que descobri a existência desse personagem.

FF - O seu filme procurou situar o personagem central desde os seus primórdios ou quando se iniciou comerciante de peles, ou foi direto para a cidade de Pedra, nas Alagoas, onde a obra dele teve a expressão nacional que se conhece?
GS - Não procurei fazer um filme biográfico-histórico no sentido tradicional. O filme é uma visão de cineasta da vida de Delmir Gouveia e aborda a história do personagem a partir de um determinado momento de sua vida no Recife, e daí na sua ida para o Sertão. De toda a formação do grande comerciante que ele já era, no Recife, a gente tem apenas uma referência através de umas duas cenas, que são as inaugurações do Derby, o famoso mercado por ele mandado construir e que logo foi incendiado no final do século, no Recife. Este incêndio inicia, aliás o filme, que já pega Delmiro, digamos assim, no “tope”, já na sua fase de oposição à oligarquia do açúcar, sob o comando de Rosa e Silva, então Vice-Presidente da República. É que essa oligarquia contraditava os seus interesses de empresário modernizador, de introdutor de um mercado novo, de uma relação de venda ao consumidor muito mais barata do que permitiam os métodos daquelas estruturas tradicionais. Assim, ele se chocou com o Governador, Prefeito e Vice-Presidente, e mais ainda quando da aventura amorosa que teve com a enteada do Governador, pela qual largou a família e tudo que tinha de estrutura comercial, raptou essa moça e foi se esconder perto da cidade de Pedra, junto a um coronel local, Ulysses Luna. E é aí que ele começa uma nova vida, e desenvolve uma atividade que no torna muito significativo como figura da nossa História.

FF - Essa nova vida pela qual ele opta, e que se tornou o ponto central do seu filme, é um corte ou uma reformulação em relação ao passado até que então vivera?
GS - De uma certa maneira, é um corte. Delmiro foi um desses personagens com uma capacidade marcante de apagar o passado e se renovar. Ele saiu de várias falências, de várias derrotas comerciais, soube, de fato, recomeçar a vida pessoal em vários momentos. O que ele nunca abandonou, o que tornou possível toda aquela experiência de industrialização, no Sertão, foi exatamente o comércio de couro que ele não abandonou. Ao contrário, pois o Sertão é que fornecia, aos comerciantes do litoral, do Recife, e de Maceió, a matéria-prima de peles e couros, já que os caprinos têm sua maior concentração naqueles espaços. Indo para Pedra, foi-lhe possível montar, em pleno miolo da região produtora de peles e couros, uma estrutura comercial, de compra, e também artesanal, de preparo e melhoria. Através de uma pequena estrada-de-ferro e, em seguida, do transporte fluvial pelo São Francisco, o produto chegava, então, até Maceió, onde seguia para o exterior. Desta forma, ele não apenas reformulou a sua estrutura de compra a exportação de peles, como o fez numa escala e num nível muito maior do que fazia no litoral.

FF - Em sua opinião, seria possível qualificar-se o Delmiro Gouveia como um precursor; um visionário ou um emancipador?
GS - Precursor..., sem dúvida; visionário, eu creio que também...

FF - E o que lhe terá faltado para poder ser apontado como um exemplo de amancipador?
GS - O fato de que sua carreira foi interrompida no momento em que ele se organizava, no momento em que seu visionarismo conseguia se solidificar em coisas concretas, como a usina, a cidade que fez, a fábrica, a transformação de camponeses em operários qualificados. Quando tudo isso atingia seu pleno desenvolvimento, seu significado maior, ocorre o seu assassinato. O projeto pára o qual ele partiu, inicialmente, se revelou muito maior quando se apresentou a possibilidade de associação com capitais americanos para um plano integrado de investimentos na industrialização, no pastoreio e na agricultura. Seria qualquer coisa de muito audaciosa, que importava até mesmo na utilização da energia elétrica de Paulo Afonso até o recife. E foi na intenção desse grande projeto que ele partiu pára a obtenção das permissões estaduais e federais que se faziam necessárias. No governo de Pernambuco não estava mais seus inimigos, da linha de Rosa e Silva, mas ainda assim sua proposta pareceu suspeita. Talvez ele pagasse, aí, pela atividade de comerciante arrojado, de atitudes modernas que incluiriam até um certo aventureirismo. Frente a uma cera ética tradicional da época, a figura pioneira de Delmiro, no Recife, sempre despertara muitas reservas e daí, talvez, a desconfiança do novo governador, General Dantas Ribeiro, que julgou pressentir qualquer coisa de “velhacaria”, na proposta que lhe encaminhava o antigo comerciante de peles do Recife. A mim me parece, em última analise, que Delmiro é o exemplo de como as classes empresariais, ou seja, a burguesia, em nosso País, poderiam ter formulado um projeto nacional independente, já que ele acabou partindo sozinho para a sua luta.

FF - ...Bem, se não pode, então, ser o exemplo de emancipador de que falei acima, o seu filme, no entanto, é um filme sobre a nossa emancipação, política, social, econômica, não é isso?
GS - Ah, sem dúvida. Isto aí não há duvida. Foi algo que assumi com a maior consciência. Com o já disse antes, acho que ele é uma proposta de superação do desenvolvimento, com nosso próprios recursos e a mobilização da população do local, o que é certamente um dado muito importante.

FF - O filme certamente se detém muito sobre a transformação de Pedra em Delmiro Gouveia. O governo que ele estabeleceu sobre aquela cidadezinha teria sido, de fato, como se disse, uma demonstração de despotismo pessoal?
GS - Parece que sim. Da mesma maneira que era o comportamento corrente naquele universo de coronéis. Era, entretanto, um despotismo muito diferente do autoritarismo dos coronéis vizinhos, pois que visava a uma nova forma social de vida no Sertão. Tratava-se de uma visão integrada da realidade. Ao mesmo tempo que ele criava uma fábrica, uma usina, também fazia surgir uma vila operária onde impunha hábitos de comportamento social, de higiene, de igualitarismo. E reconhecido o fato de que ele não permitia a exploração do operário, no plano, por exemplo, da compra de bens de primeira necessidade. Ela mantinha um armazém abarrotado de farinha, de charque. Então, quando os comerciantes apareciam na feira semanal de Pedra, tentando impor um preço acima do que ele achava justo, o razoável, ele abria o seu mercado para criar a concorrência e baixar os preços. Ele não permitia, por exemplo que a feira, na idadezinha, vendesse coisa alguma antes que se hasteasse uma bandeira na fábrica, sinal de que o último operário já tinha recebido o seu salário. Significava, então, que o operário podia concorrer na compra dos produtos igual que outros habitantes. Tinha, pois, um tipo de preocupação que era, no mínimo, estranho para a sua época, o seu meio e aquela região. Como ele viajou pelo exterior, com o objetivo mesmo de adquirir equipamentos e atualizar-se, ele estava ao par do moderno em matéria de industrialização. Em pleno isolamento do Sertão, ao conseguir formar operários-técnicos, Delmiro evidentemente tinha que oferecer-lhes condições de fixarem-se lá e os benefícios sociais que lá implantou terão tido certamente este objetivo.
Das biografias e depoimentos a seu respeito, não se recolhe uma formulação teórica der Delmiro como de um novo capitalismo. Ele era visto como um empreendedor, um empresário moderno, um coronel-empresário moderno, progressista seria o termo mais correto para isto, mas no seu sentido prático, não no ideológico, no teórico. Ele era o homem que sabia ver as coisas e realizá-las; era o homem de ação mais que de pensamento.

FF - Como você planejou a narrativa cinematográfica dessa história verídica, de modo a propor uma reflexão capaz der trazer um esclarecimento para o expectador?
GS - Nós articulamos, o Orlando Sena e eu, que trabalhamos juntos, no argumento e no roteiro, um filme em quatro episódios. Na verdade, três episódios, e um epílogo. Quem comanda e narra o primeiro é a moça que foi com ele para o Sertão, interpretada pela Sura Bernichewski; a segunda é comandada pelo Jofre Soares, como o Coronel Ulisses Luna, quem libertou o Delmiro de uma prisão no Sertão, na qual foi parar por uma vingança do Governador, seu inimigo; o terceiro episódio é comandado por um seu sócio, uma síntese dos sócios, assessores e advogados com quem Delmiro lidou. Interpretado pro Nildo Parente, Lionello Iona, esse sócio, é, ao mesmo tempo, um contraponto, um alter-ego do Delmiro e será ele quem vai realizar a oposição final a Delmiro, quando lhe é feita a proposta de associação e compra pelos ingleses. É o Iona quem simboliza essa posição de associação e quem vê a destruição próxima. E tem o epílogo, que vem após a morte de Delmiro, que é a história da fabrica pós a morte dele. Esta parte é conduzida por um operário, ex-camponês e que é feito pelo Zé Dumont e se chama, no filme, Zé Pó. Como no caso do Iona, não houve a intenção de repetir o verdadeiro Zé Pó, que também existiu.

FF - Geraldo, quem matou Delmiro Gouveia?
GS - Olha, é difícil você afirmar. Há várias versões: a dos biógrafos, as correntes na região... Poderia lhe narrar a que me foi contada no clube operário, na Vila de Pedra, por um velho operário, hoje morto, e que conheceu Delmiro quando criança – chamava-se ele Pedro Campina e contou-me a sua história chorando, ali no meio de quase cinqüenta operários. São muitas as versões. Talvez a mais aceita seja a de que teria sido um coronel inimigo de Delmiro, com quem ele tinha tido questões de terras, um coronel chamado Zé Rodrigues, que o teria mandado matar com o acobertamento de algumas figuras, uma, sobretudo, chamado Capitão Firmino, que morava na Vila de Pedra. Inclusive foram presos três homens, que foram maltratados e que confessaram. Hoje apenas um deles vive e nega esse assassinato. É difícil dizer quem mandou matar. O filme, aliás, não se detém nesse lado policial. Na verdade, o filme responde é à pergunta de a quem aproveitou a morte de Delmiro Gouveia. Para mim não há duvida: atiraram no Delmiro para matar a fábrica.

Rubens de Falco: sou um ator empostado. Gosto de personagens que viveram no passado.
FF - Rubens, gostaria que você situasse a sua compreensão do personagem do Delmiro Gouveia.
RF - Bem, tentando reconstituir um pouco como as coisas se passara: evidentemente, foi-me apresentado um roteiro, por sinal muito bem elaborado, no qual a figura de Delmiro Gouveia aparecia não como um herói, mas como o resultado de várias visões sobre a sua personalidade: a da menina com quem ele fugiu; a do coronel que o introduziu no Sertão; a do sócio que o acompanhou durante a vida inteira; a do operário que foi a resultante de tudo o que ele fez. Embora, no tema, o filme nada tenha ver com o filme japonês “Rashomon”, a proposta narrativa tem com ele alguma semelhança; bem, a partir desse roteiro, eu comecei a estudar mais detidamente o personagem, do qual, no entanto, existem relativamente poucas informações, em biografias um pouco romanceadas, algumas das quais me foram dadas, para leitura, pelo Geraldo Sarno. Li, mastiguei aquilo tudo e daí começamos um trabalho que, a partir de um fato histórico recente, chegasse a uma ficção que se situasse o mais perto possível de quem foi Delmiro Gouveia. Dentro desse quadro de várias versões, a personagem mesma de Delmiro Gouveia surge como uma espécie de catalisador do quadro histórico apreciado e analisado.

FF - Resultou, sem dúvida, um trabalho muito fascinante...
RF - Claro. Mas o mais importante para mim, como ator, foi tomar conhecimento deste homem do qual conhecia apenas o que me informara um pequeno documentário sobre ele. E, de repente, alguém me diz: “Você vai ser o Delmiro Gouveia”. Foi uma sorte, especialmente para mim, termos ido fazer locação lá mesmo onde Delmiro Gouveia levantou a sua obra, o que nos envolveu, equipe e elenco, de uma maneira total. Usei, então, um sistema de que a gente se vale muito no teatro, onde sempre se tem ensaio de mesa. Lia e relia o roteiro, voltava a passagens que me haviam escapado e fui me integrando dentro do espírito deste homem, que tinha o seu lado déspota, de coronel do interior, talvez como um meio para realizar os fins pretendidos. Não sei se ele tinha consciência exata do que iria fazer; uma coisa, porém, é certa – ele tinha consciência do que estava fazendo no momento, que era a preocupação de dar um valor social àquela gente do sertão, como parte da obra que ambicionava. Para isto, precisou muitas vezes ser um homem duro.

FF - Então, na sua visão, admirar Delmiro é possível ou se deve mesmo fazê-lo?
RF - Eu acho que só se deve admirar. Acho que o mundo, a vida, as pessoas, pos objetos, obedecem sempre a ciclos. Quem sabe se, nos 70 anos que se passaram – aliás 60 – quem sabe, então, não estamos atravessando, neste momento, algo parecido à época de Delmiro, já que tanto nos preocupamos, cada vez mais, com o que se pode fazer com esta terra nossa. E é justamente aí que reside a oportunidade do filme, o seu momento exato, de fazer ressurgir este homem que representa uma vontade nacionalista.

FF - Pode-se concluir, então, que este personagem tem um significado especial em sua carreira de ator?
RF - Olha, eu comecei a fazer teatro muito cedo, minha carreira já vai completar 26 anos. Fui formado na rigidez do TBC e na dos Jograis, de São Paulo. Nestes 26 anos, devo ter feito algumas coisas boas: a primeira foi ter optado por fazer algo que gosto de fazer; a segunda foi ter feito parte dos Jograis, de São Paulo; das peças de teatro que fiz, muita coisa foi boa, muita coisa não – eu gostei muito de um trabalho com o Glauce Rocha, que foi a peça “O exercício” – e, em cinema, fiz muita porcaria. Considero, entretanto, que um filme que fiz foi bom, o “Tempo de violência”, do Hugo Huznet, talvez um filme que tenha chegado cedo demais – seria um filme para os dias de hoje. Represando esses 26 anos, acho que eles valeram a pena se me foi dada a oportunidade de fazer algo que não diria definitivo, pois nada é definitivo, mas algo que, como ator, pelos menos no cinema, em coloca numa posição mais séria, mais preocupante, mais participante. Depois de “Delmiro Gouveia”. De fato, tenho que pensar muito sobre o que vou fazer em cinema e sobre o que eu, realmente, quero fazer.

FF - Os personagens da época são constantes na sua carreira, não é verdade?
RF - Bem, eu costumo dizer que sou um ator empostado. Por isso, sei que me dou bem com os personagens que viveram no passado, conheço os meus recursos e tive uma formação teatral muito sobre peças ditas “de época”. O passado, em “Delmiro Gouveia”, foi recriado com muito talento, com a diferença de arte entregue ao Anísio Medeiros, que é um dos melhores da sua especialidade. Mas, sei lá, acho que a gente conseguiu essa colocação sem muito se preocupar em assumir um comportamento de “filme de época”. Também o processo de envelhecimento do Delmiro não apelou para a maquilagem pesada, apenas a gente foi procurando dar uma expressão mais corporal, na postura física, na maneira de andar ou de articular, que, no caso, expressariam m ais o interior do personagem. O resultado tão satisfatório desse processo somente foi possível porque todos, no elenco, setiamo-nos num trabalho conjunto, muito na base do papo, muito na base da crítica sadia. Acho que isto só se tornou possível – e tinha que ser assim, era ler o roteiro e ver – pelo comando tranqüilo e muito aberto do Geraldo Sarno, sempre pronto a ouvir e discutir, sempre muito educado, mas muito seguro das suas intenções. Considero um privilégio, nesta altura da minha carreira, ter trabalhado com este moço cineasta. Acho que o “Delmiro Gouveia” vai fazer época, sem trocadilho; e penso que influenciará até mesmo outros cineastas pelo que contém de novo, de oportuno, apreciando livremente, abertamente a realidade da história do homem brasileiro. Foi um bonito tempo de trabalho.

(*) Jornalista

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O Senhor do Sertão

Brasília, 21 de junho de 1970

Paulo Dantas (*)
-
“O Nordeste até hoje, seu moço, só deu três grandes homens. Estou procurando formar a quadra, mas não acho.”
- Muito bem, Mainha. Quem são esses três grandes do Nordeste?
- “Padre Cícero, na oração; Lampião na valentia e Delmiro Gouveia no trabalho.”
Essa conversa aconteceu comigo, em 1955, quando na cidade de Pedra, interior de Alagoas, estive à procura de material humano sobre a vida e a obra social de Delmiro Gouveia, o pioneiro de Paulo Afonso e o precursor da redenção econômica nos sertões nordestinos.

Divulgada a fala curiosa de Mainha, morador de Pedra, a mesma ganhou a imprensa e o rádio, tornando-se um achado definidor do inconsciente coletivo do Nordeste. Virou folclore social vivo, verso de violeiro de feira, dito popular anônimo, aparecendo até em tratado de sociologia estrangeira.

TRINDADE NORDESTINA

O folclore heróico já imortalizou o cangaceiro, através das façanhas de Lampião e o seu bando. O folclore místico do beato exaltou Antônio Conselheiro, e, sobretudo, o Padrinho Padre Cícero do Juazeiro, chefe romeiro dos sertões. Já ao folclore social cabe a missão de divulgar Delmiro Gouveia, cearense do Ipu, cujo centenário de nascimento o Brasil comemorou inteiro em 1963, através do aparecimento de numerosa biografia.
De lá para cá, a glória de Delmiro Gouveia só tem crescido e recentemente até um folheto ilustrado muito importante, inserido em enciclopédia avulsa, apareceu, consagrando em definitivo, esse extraordinário brasileiro, figura histórica e social do porte de um Mauá.
Completada, podemos dizer, essa trindade bendita dos gigantes do Nordeste, no tempo e no espaço, certeza temos de que o Brasil vai cumprir seu papel social na história contemporânea.

QUEM É O HOMEM

Descendente de portugueses antigos, gente colonizadora, Delmiro Augusto da Cruz Gouveia, filho de Delmiro Porfírio de farias e Leonila Flora da Cruz Gouveia, nasceu em 5 de junho de 1863, na então Vila Nova Ipu Grande, no Ceará. (Erraram alguns biógrafos quando situaram o nascimento do nosso herói em Sobral).
Cearense no melhor sentido do termo, com formação pernambucana, espírito avançado para a época, enamorado das mais avançadas técnicas estrangeiras aplicadas ao trabalho e ao desenvolvimento econômico e social do Nordeste, Delmiro Gouveia acabou realizando seu destino de homem e de pioneiro dos sertões de Alagoas, na cidade de Pedra, para onde fora perseguido pela polícia pernambucana, devido ao rapto famoso de uma bela jovem, a Eulina, fina flor do Recife, protegida e afilhada do então Governador da Província, Segismundo Gonçalves. Esse romance de amor foi um escândalo na época, já que além de casado, Delmiro Gouveia era figura muito importante na “bela época” social do Recife, tendo solar no hoje chamado bairro de Apipucos, tão decantado pelo sociólogo Gilberto Freyre.
Sertanejo de gostos apurados, muito dado às mulheres e às aventuras amorosas, a vida passional de Delmiro Gouveia encheu a crônica, vindo se projetar até nossos dias como um tipo digno de um romance. Ando nessa pista e assim abro uma das minhas novelas do TREBO DOS ESPANTOS.
- Juvêncio amigo, a conclusão a que cheguei agora é de que não fui muito afortunado no amor, apesar de ter amado tanto.
- Bem que o coronel merecia mais, mas é sempre assim. Feliz no jogo ou no negócio, infeliz no amor. Acho, porém, que o coronel é um homem realizado. Criou Pedra, botou a cachoeira pra funcionar, industrializou esse pedaço de sertão.
- Bondade sua, compadre. O rio pode ser federal, mas desse nosso lado de cá, lado macho das Alagoas, ele é meu. Me fiz dono e usufrutuário de suas águas na cachoeira, mas isto não foi só pro meu bem. É pra Nação, para o povo inteiro tirar das suas águas o proveito e o conforto da luz elétrica.
- Bem sei disto, compadre Delmiro. Sua fama corre longe.
Altaneiro, sempre vestido de branco, vaidoso como um coronel do sertão, Delmiro Gouveia conversava com o amigo Juvêncio na varanda da sua residência.
- Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Quem tem água não morre pagão – sentenciou, olhando longe. Mas hoje não estou pra esses assuntos sociais. Quero é conversar com o amigo sobre o amor, sobre as mulheres. Bem sei que são assuntos bem complicados e difíceis. Mais difícil mesmo do que domar a natureza.
Juventina, a jovem concubina com quem Delmiro Gouveia estava vivendo, entrou na varanda.
- Jove, - disse Delmiro – traga aqui um café pra nós. Estamos aqui, eu e o compadre Juvêncio, trocando umas confidências.
Submissa e mansa, a mulher obedeceu, rumando para a cozinha.
- De todas as mulheres de minha vida, a Juventina foi a mais humilde. Veio de Pernambuco e pela idade, bem que podia ser minha filha.
Fez uma pausa:
Amo nessa jovem, além da sua beleza morena a humildade. Jove é uma menina sofrida. Já a Anunciada a Iaiá, minha primeira esposa, apesar de gênio recatado, complicou tudo com o maldito orgulho; a Eulina, mãe dos meus três filhos, também. Não suportava esse deserto de Pedra e não quis me ajudar em nada. A Jove não, é muito boazinha. Não reclama nada... Ando com o pressentimento que ela vai ser a última mulher da minha vida.
- Bobagem, coronel. Não diga isso...
E de fato foi essa Juventina de Castro, pernambucana de 24 anos de idade, o último amor de sua vida, já que aos 20 de outubro de 1917, tombou Delmiro Gouveia na varanda da sua casa, assassinado por misteriosos inimigos.
Estava com 54 anos e já havia consolidado nos sertões alagoanos uma obra social de avançado estilo, criando Pedra, uma cidade-modelo, com água encanada, luz, conforto e higiene, além de escolas, creches, parques de diversões etc.
Verdadeiro Mauá dos nossos sertões, espécie de um Bernardo Sayão da nossa indústria, Delmiro Gouveia foi uma figura positiva, um verdadeiro dínamo propulsor de entusiasmos sociais e criadores na história econômica do Brasil na primeira década deste século. A ele o Nordeste deve seu grande impulso de libertação, seu primeiro gesto de industrialização total.
Órfão em plena infância, Delmiro Gouveia ainda menino deixou o Ceará, indo se criar no recife, onde inicialmente trabalhou nos trens suburbanos da Pernambuco Street Railway Company, chegando a ser chefe-de-estação.
Filho de pai boiadeiro, morto na guerra do Paraguai, Delmiro desenvolveu dentro de si impulsos heróicos e caminheiros, trazendo na massa do sangue o gérmen de um grande progressista comerciante.
Deixando os trens da velha Caxangá tornou-se negociante de peles de bode (seu grito de guerra era “fora do bode não há salvação”), chegando a ser, entre nós, o precursor do sistema dos supermercados de abastecimento, com a criação do Derbi, estabelecimento que foi incendiado pelos inimigos políticos enchendo a crônica recifense da época de espanto.
Casado com dama nobre, viaja para o estrangeiro e ganhando muito dinheiro, torna-se senhor respeitável, dono do solar “Vila Anunciada”, ditador da moda e de fidalgas maneiras.
A realização, porém, do seu destino estava nos sertões de Alagoas, onde tornou-se pioneiro na eletricidade, da grande indústria, da vila operária, da água encanada, da assistência social, do automóvel, das estradas, dos melhoramentos industriais e das diversões públicas.
Criador da indústria do bode, introduziu também o zebuamento bovino, a plantação da palma forrageira, a linha de coser, o cinema e a máquina de escrever, o futebol e a patinação, tudo isto no duro e viril sertão das pedras e dos cactos, dos homens e das mulheres merecidas.Foi, em todos os sentidos, um sertanista moderno, um pioneiro social dos mais avançados que tivemos em todos os tempos.


(*) Escritor, pesquisador.

O Assassinato de Delmiro

Recife, 14 de setembro de 1968

A noite era quente e abafada como costumam ser as noites de verão no sertão nordestino. Firmino Rodrigues Pereira, a última pessoa que falou com o coronel Delmiro, declara tê-lo deixado a ler tranquilamente o “Jornal de Alagoas” no alpendre da casa de “Dona Jovem”.
Algumas pessoas asseguraram que a luz elétrica foi cortada por alguns segundos e, nesse ínterim, passou um desconhecido com um lampião a querosene aceso diante da varanda de D. Jovem. Então, ouviram-se os tiros.
Os pesquisadores não acreditam muito no corte de luz, porque Delmiro era um homem prevenidíssimo; o corte o teria alertado.
Diz ainda Firmino, um dos acusados de mandante do crime, apesar de sua amizade com o Pioneiro, que ao chegar em casa aquela noite, antes de tirar o paletó, ouviu ruídos como de pancada. “Que pancadas são essas?”, teria perguntado a sua mulher, ao que ela respondeu: “que pancada que nada! Foi tiro, e no Coronel Delmiro”.
Firmino chegou ao local do crime ainda a tempo de amparar a vítima. Dizem que ao cair Delmiro perguntou: “Já prenderam os cabras?”.
Levado para um quarto, Delmiro pediu que lhe tirassem o paletó. Firmino Rodrigues estava nervoso e desorientado, naquele momento de aflição, demorando-se um pouco em cumprir o pedido. O industrial solicitou então que o paletó fosse rasgado, o que se fez. Logo depois ele pedia que lhe rasgassem a camisa. Os presentes viram então, no peito, bem em cima do coração, orifício de uma bala, do qual saia um pouco de sangue. Delmiro morreu antes de ser socorrido pelo médico. Dizem os presentes que suas últimas palavras foram: “Valha-me... Nossa... Senhora...”, ditas compassadamente, muito devagar.
O impávido industrial sepultado no dia seguinte, sem pompas, conforme ele mesmo determinara em seu testamento. A morte de Delmiro foi chorada em prosa e verso pelo povo que inclusive, denunciava os criminosos:

“Quando o enterro de Delmiro
Foi pela rua passando,
parece que a gente ouvia
a cachoeira chorando

Mataram senhor Delmiro
num dia de quarta-feira
mandada por Zé Rodrigues
Foi aquela cabroeira.”

Coronel José Rodrigues de Lima, chefe político e intendente de Piranhas - AL, foi um dos acusados, devido a interesses contrariados e aborrecimentos por questões de fornecimento de lenha a Paulo Afonso. Era comprador de peles e de certo vira diminuir-se seu movimento comercial desde que Delmiro se instalara em Pedra.
Outro apontado como mandante do crime foi José Gomes, chefe político de Jatobá, hoje Tacaratu, Pernambuco, cuja filha de criação Delmiro raptara quinze anos antes. Hipótese completamente fantasiosa. Firmino Rodrigues foi acusado por motivos tão fantasiosos quanto os que justificaram a acusação de José Gomes.
A Machine Cottons apenas foi apontada dez anos depois do assassinato, quando, “discretamente”, conseguiu comprar a maquinaria da fábrica de linhas de Pedra, sua única concorrente, inutilizando-a e jogando-a no Rio São Francisco. Este procedimento, que lembra o de Roma na conquista de Cartago, chamou atenção dos interessados no caso.
As autoridades encarregadas de investigar o homicídio prenderam os três supostos mandatários: Róseo Morais do Nascimento, José Inácio Pia, vulgo “Jacaré” e Antônio Felix do Nascimento, conhecido como Leão.
A princípio, Róseo e “Jacaré” acusaram José Rodrigues como mandante do crime, concordando com uma versão da política segundo a qual teriam encontrado aquele chefe político às margens do Rio Piranhas (não confundir com Ipiranga) e combinado os detalhes do atentado. Interrogados separadamente, a pedido do advogado de José Rodrigues, caíram em contradição. Enfim declararam ter confessado o crime sob coação e espancamento. Retiradas as camisas que vestiam, todos viram que os homens tinha sido impiedosamente seviciados.
Foram condenados a 30 anos de prisão simples. Por ocasião da transferência dos supostos criminosos de Água Branca para Maceió, os jornais de Alagoas noticiaram: “Aí vem três feras – Somente anteontem partiram de Água Branca para serem recolhidos à Casa de Detenção os perversos assassinos de Delmiro Gouveia, os quais acabam de, pelo moralizado júri daquela comarca, receber a confirmação do devido castigo que mereciam. Conduz as feras o Tenente Manoel Lucena”.
Uma das “feras”, a mais perigosa era José Inácio Pia, “Jacaré”, homem franzino e doente “pois tinha uma costela quebrada a coice de fuzil e uma cicatriz no lado superior da vista esquerda, de tacão de botinas dos soldados do Capitão Pedro Nolasco”. Evadiu-se da penitenciária duas vezes, sendo morto em tiroteio com a polícia, quando de sua captura, Jacaré jamais admitiu ter assassinado Delmiro Gouveia. Por ocasião do júri, declarou nunca ter confessado o crime. O seu compadre Róseo, não agüentado mais o “interrogatório” do Capitão Nolasco, foi quem confessou, para se contradizer logo depois. A “fera” Róseo Morais do Nascimento é um homem que não fez queixa, “não demonstra ódio ou hostilidade. Notei apenas que estremeceu e ficou com as feições alteradas quando falei de Capitão Pedro Nolasco”, diz Lima Júnior no seu livro.
Róseo – que ainda hoje se diz inocente – cumpriu apenas 14 anos, 9 meses e 15 dias de prisão, sendo solto imediatamente por decreto de Tasso de Oliveira Tinoco, que reduziu e comutou diversas penas, entre elas a de Róseo para 10 anos de prisão simples.
Na noite do assassinato, os “criminosos” dormiam na estação de Jarapatuba, rumo à Bahia. Na tarde de 11, saltaram em Maroim lá começando a trabalhar como pedreiros. Cientes de sua acusação, conseguiram declaração do industrial que os empregara, dizendo ser impossível a autoria do crime, pois Róseo e “Jacaré”, naquele dia, estavam bastante longe de Pedra, depois de lhes ter prestado serviço por alguns dias. De nada adiantou a declaração nem outros testemunhos evidentes.
O importante para a Polícia era achar um bode expiatório, não importa quem, contanto que ela dê impressão de competência e bons serviços. Aliás, isto não é peculiaridade da polícia brasileira, não. Os Estados Unidos, protótipo da civilização ocidental, empregam amiúde este “método” de investigação e tem dado sobejos exemplos de sua eficiência: desde a tragédia de Sacco e Vanzetti, passando pelo Barbara Gran, o assassinato das oito enfermeiras, culminando com a tragédia da “Família Kennedy”.
Nascido a 5 de junho de 1863, em Ipu, Ceará, Delmiro Gouveia, instalou o primeiro Mercado Modelo do Brasil, nesta capital, Recife, onde é hoje o parque Derby. Em Alagoas construiu 520 quilômetros de estradas. Na cidade de Pedra, Alagoas edificou uma fábrica de linha de cozer que, no início do século abasteceu todo o mercado brasileiro e os dos paises vizinhos. Aí está a razão de sua morte. Se alguém perguntar a qualquer nordestino, quem matou Delmiro Gouveia, ele responderá: “A Machine Cottons”. Para as autoridades, porém o assassinato continua sendo um mistério.Mas, justiça se faça a Cia. Inglesa: ela deve ter ponderado que o pioneiro nascera fora de tempo, e cuidou de providenciar o acerto das coisas. Se fosse ainda o tempo da Inquisição Delmiro seria assado vivo numa monumental fogueira erigida pela Machine Cottons. Fácil seria provar ser Delmiro feiticeiro; não vivia o homem a fazer diabruras. Coisas incríveis? O seu mercado modelo, no Derby, e sua fábrica de linhas em Pedra, não eram eletrificadas por ele, quando no Brasil ainda nem se ouvia falar em luz elétrica?