quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A História de Delmiro Gouveia


A história de Delmiro Gouveia, quase desconhecida entre nós, é formada de todos os ingredientes, até mesmo os românticos. Conseguindo acumular capital a partir de um pequeno comércio de couros, Delmiro Gouveia enfrentou administrações reacionárias e corruptas e idealizou uma espécie de milagre sertanejo que, no âmbito de sua fábrica de linhas de coser, em Pedra, Alagoas, antecipou conquistas sociais que até hoje não foram conseguidas pela esmagadora maioria dos trabalhadores brasileiros.
Em um trabalho de fôlego publicado em um dos volumes de os grandes enigmas de nossa história, edição de 1981 da Otton Pierre Editores Ltda., o comentarista Nilson Lage relata uma das mais insólitas realizações ocorridas em nosso país. “Se fosse nos Estados Unidos", afirma Nilson Lage, "Delmiro Gouveia teria um busto em cada federação das indústrias, um retrato em cada Lyons Clube, um lugar de honra na cartilha de moral e civismo da escola primária, mais ou menos como acontece com Benjamin Franklin, Thomas Edison ou Henry Ford. Como estamos no Brasil, falar em Delmiro Gouveia é coisa de mau gosto nos meios empresariais, pois até para ser enredo de escola de samba (a Império da Tijuca, no Rio de Janeiro, em 1980) foi preciso que acontecesse antes uma abertura política". Delmiro combateu a oligarquia e foi morto pelo imperialismo.
Os capitalistas brasileiros costumam compor-se com as oligarquias e têm mantido pactos com o imperialismo. A luta de Delmiro Gouveia, sua história romanceada, está aí para denunciar absurdos no processo de desenvolvimento que se adotou no Brasil - e do qual se nutrem os empresários estrangeiros. Por exemplo: Delmiro Gouveia demonstrou que o atraso do Nordeste se deve menos à seca, que pouco prejudicou seus negócios no ano de 1915, época em que se registrou a maior seca do Nordeste, do que ao atraso das relações sociais na região, com suas derivações na incompetência administrativa, no compadrio e na brutal desigualdade na distribuição da riqueza e dos investimentos. A biografia desse homem é, portanto, uma heresia em relação às ideias oficialmente sustentadas. O regime que esse homem implantou em sua fábrica de Pedra é também o contrário daquele que a Sudene (Superintência de Desenvolvimento do Nordeste) incentivou.
Na sua fábrica, Delmiro utilizava matérias-primas da economia local, empregava grandes contingentes de mão-de-obra e reinvestia ao máximo na própria região. Nada de fábricas automatizadas, com o mínimo de empregados, sustentadas à custa de incentivos fiscais com matérias-primas trazidas de longe e lucros rapidamente transferidos para os bancos do Rio de Janeiro e de São Paulo, quando não eram enviados aos bancos de Nova Iorque e Londres. O modelo de progresso representado pela pequena hidréletrica no rio São Francisco, que Delmiro Gouveia não teve tempo de ampliar, pela sua fábrica de linhas de coser e até mesmo pelo mercado Derby em Recife, uma antecipação dos shoppings centers contemporâneos e que foi incendiado criminosamente, todos esses empreendimentos envolvem a preocupação constante de eliminar intermediários e atravessadores que tanto encarecem a circulação de produtos no Brasil, mas que tantas fortunas têm gerado em nosso país. Em região de poder aquisitivo baixo, ele conseguia boas margens de lucro, vendendo mais barato produtos de consumo de massa.
O Nordeste com que Delmiro sonhava teria os dentes tratados, a barriga forrada e seria pobre, mas decente. O sertão nordestino ainda hoje é desdentado, faminto e miserável. Por isso é que se diz que quando o truste da Machine Cotton comprou dos herdeiros a fábrica de Pedra e atirou suas máquinas no fundo do rio São Francisco estava prestando um serviço tanto a si mesmo - preservando um monopólio de mercado, quanto aos interessados em conservar o espetáculo das dores nordestinas pontilhadas de "incelenças". São essas dores, tão folclóricas e de tão grande intensidade dramática, o principal argumento com que os poderosos do lugar estendem a mão à caridade do governo federal para enfiar no bolso a quota maior das esmolas. Delmiro Gouveia foi assassinado em 1917.
Antes, a Machine Cotton vinha aumentando a pressão, ora oferecendo-se para comprar a fábrica, ora registrando como suas, nos países da América Latina, marcas tradicionais das linhas nordestinas. O sucessor de Delmiro na firma, o sócio Lionelo Iona, suspendeu o projeto de ampliação da usina hidrelétrica e deu fim desconhecido aos dois mil teares encomendados para a fábrica de tecidos, sonho de Delmiro nos seus últimos meses de vida. A indústria ficou restrita às linhas de coser. Delmiro Gouveia providenciara em disposição testamentária para que seus herdeiros não pudessem vender as ações de fábrica antes de completarem trinta anos.
Mas o jovem Noé Gouveia, filho mais velho de Delmiro, mostrando-se mais interessado em passear no seu automóvel novo pelas ruas de Recife do que assegurar o futuro da fábrica, permitiu que, através de uma manobra judicial, a venda afinal fosse efetivada à Machine Cotton por um documento firmado na Escócia no dia de finados de 1929. Esse documento é notável. Os herdeiros receberam 27 mil libras, mas se comprometeram, entre outras coisas, "a não reentrarem no negócio de linha". Para disfarçar, outra cláusula estipulou que a Machine Cotton receberia o pagamento de cinco mil libras "pelos gastos que teria para transformar a fábrica de linhas em manufatura de tecidos. O episódio seguinte ocorreu em abril de 1930.
Os ingleses chegaram, desmantelaram as máquinas, jogaram tudo no rio São Francisco, quebraram à marreta tudo o que puderam e tiveram daí em diante sinal livre para dominar o mercado. Os sonhos de Delmiro Gouveia, os nordestinos que viviam da fábrica, os plantadores os quais ela fornecia o algodão seridó - quem ia se importar com eles? Meses depois, a Revolução de 1930 chegava ao poder, vinda do extremo Sul do país. Mas nem isso, e nada do que aconteceu depois, mudaria substancialmente as coisas no sertão das Alagoas. Grande preocupação com os negócios não impediu que Delmiro Gouveia seguisse o caminho do pai em matéria de amores.
Já estava separado de Iaiá quando, quarentão, apaixonou-se por uma menina, Carmélia Eulina Amaral Gusmão, filha de uma senhora chamada Ana Gusmão, amiga íntima de Segismundo Gonçalves, presidente do Estado, de partido político adversário do partido de Delmiro Gouveia. Segismundo, que, segundo a voz do povo, era pai da moça, entregou o caso à polícia com a ordem de liquidar com Delmiro. Processado e pronunciado em Juízo, teve que fugir para Alagoas. De lá, na localidade de Pedra, uma parada ferroviária que tinha cinco casas, mandou um "cabra", Vicente Moura, roubar Carmélia de seu tutor judicial. Tiveram três filhos. Em Pedra, Delmiro comprou por três contos de réis uma casa de tijolos, meia-água, e ali começou a comprar couros. Como faltava água (que vinha de longe, no trem semanal), ele construiu o açude do Desvio, no córrego Paricônia. Em 1.907, fez a barragem no Riacho de Mosquita para construir o açude de Pedra Velha.
Começava a deflagrar a revolução industrial no mais remoto sertão. Em 1.909, Delmiro Gouveia trouxe ao Brasil a missão Moore, americana, e fez contatos com as firmas Bromberg, do Rio de Janeiro, e W.R. Brand & Company, de Londres, a quem fez encomenda de projetos de eletrificação. Por essa época, Carmélia o abandona, os amigos se preocupam. Mas o nosso herói sonha, ouvindo, à noite, o rumor distante da cachoeira do velho São Francisco. Com a vitória das oposições em Pernambuco, foi eleito presidente do Estado o General Emídio Dantas Barreto, ministro da Guerra do governo Hermes da Fonseca. Aglutinando as forças oposicionistas, Dantas Barreto promove uma luta enérgica contra as oligarquias reacionárias que, durante anos, vinham ocupando os principais espaços políticos e administrativos em Pernambuco.
Delmiro Gouveia encheu-se de entusiasmo com a vitória de Dantas Barreto, pois planejava o aproveitamento hidrelétrico da Cachoeira de Paulo Afonso, utilizando a energia para um grande projeto agropecuário e levando-a por linhas de transmissões a todo o Nordeste.Com os demais diretores da futura Companhia Agrofabril, o Rei do Couro, como era chamado, pediu audiência ao governador para expor-lhe os planos de eletrificação cujos projetos ele já havia encomendado à Missão Moore e às firmas Bromberg e W.R. Brand Company, do Rio de Janeiro e de Londres, respectivamente. Depois de muitas explicações técnicas, digressões sobre cavalos-vapor e quilowatts (coisas inesperadas, na época, em um gabinete de governo nordestino), Delmiro Gouveia pediu simplesmente autorização para que a linha de força passasse pelo território pernambucano, rumo aos centros de consumo.
O General Dantas Barreto, que pouco entendia da matéria mas pensava que entendia muito dos homens, respondeu, como bem disse o comentarista Nílson Lage, com a sutileza de um elefante: - O negócio que o senhor propõe é tão vantajoso para o Estado de Pernambuco que deve envolver alguma velhacaria! E assim não se fez o negócio, nem saiu a grande hidrelétrica. Só 40 anos depois é que, finalmente, seria construída a hidrelétrica de Paulo Afonso. A resistência do governo de Pernambuco obrigou Delmiro Gouveia a uma drástica redução nos seus planos: decidiu instalar uma pequena hidrelétrica no Salto de Angiquinhos, no lado alagoano do Rio São Francisco, para mover as máquinas de uma fábrica de fios.
De lá saíram as linhas de coser da afamada marca Estrela. Com a Iª Guerra Mundial, deixaram de chegar ao Brasil as linhas de coser inglesas. Começou então a utilização das linhas estrela, feitas do bom algodão seridó, tão fortes que a propaganda mostrava dois gigantes musculosos puxando cada um uma das pontas do fio sem conseguirem rompê-lo. Pedra progrediu lentamente, a princípio; de repente explodiu. Em 1.903, quando Delmiro chegou, tinha cinco casas; em 1.912, o número se elevara a uma dúzia. Em 1.915, ao visitá-la, Plínio Cavalcanti deparou com um quadro impressionante, que descreveu assim: “Nunca mais se apagará de meus olhos de excursionista deslumbrado a risonha miragem daquela cidadezinha tão branca e limpa que, à primeira vista, julguei um grande algodoal de capulhos alvejantes”.
Tive naquela hora a ilusão prismática da Fada Morgana dos campônios húngaros e, só depois de despertado da sonolência que me dera a paisagem monótona do agreste nordestino, percebi ter chegado ao vergel que Delmiro Gouveia criara dentro da brenha sanfranciscana e que sonhara transformar em Canaã de paz e trabalho. Comovido, admirei com entusiasmo aquela estranha flor de civilização”. Arno Pearse observou com espanto as legiões de operários indo para as missas aos domingos "mais bem vestidos que os europeus da classe média". Oficiais, tecelães, mecânicos, torneiros, pedreiros, dezenas de operários e operárias, que chegavam diariamente a Pedra, recrutados por todo o Nordeste, no sertão e nas cidades, salvos da grande seca de 1.915, que secou as lavouras não irrigadas de toda a região.
Pedra dispunha da melhor luz elétrica do Brasil, de uma vila operária, água encanada em todo o perímetro urbano, fábrica de gelo, jardins, telégrafo, telefone, banda de música, cinema, tipografia, escolas para crianças e adultos. Nas calçadas, nas tardes de domingo, as moças sentavam-se em cadeiras austríacas. À noite, havia retreta, carrossel, cinema e dança. No último domingo do mês, nos bailes do cassino, davam-se prêmios de 20 mil réis à jovem mais elegante em traje de luxo e à mais elegante em traje simples. As sete ruas da cidade conheceram os primeiros automóveis do sertão. E também o primeiro equipamento para tratamento de esgoto, que era encanado.
Em Pedra havia uma das maiores criações de galinhas, patos, gansos e pavões, havia criação de porcos e de cavalos de raça: os campeões chamavam-se Rochedo, Floresta e Itabaiana. As 258 casas de vila operária (em 1.915) tinham quatro cômodos e na frente um alpendre largo, no estilo das construções italianas. Não se pagava pela água ou pela luz; havia multa para quem jogasse detritos no chão. O parque industrial ficava à distância; não se via facas de ponta nem bebidas alcoólicas; não havia política; jamais houve ali um crime. Quando mataram Delmiro Gouveia, em 1.917, Pedra tinha seis mil habitantes. E a mentalidade progressista continuou ainda por algum tempo. A cidade se chama hoje Delmiro Gouveia, e foi emancipada em 1.952. No local do chalé onde viveu Delmiro há uma cruz e um marco.
No primeiro ano de funcionamento, a fábrica trabalhava com 800 operários, homens e mulheres, produzindo diariamente de 1.500 a 2.000 carretéis de linha. Mais tarde, o fabrico se diversificou para incluir linhas de coser mercerizadas, linhas de bordar, sedosas ou não, cordões e fitas para amarrados e outros. Quando os produtos se impuseram no mercado, a indústria passou a trabalhar com três turnos diários, o que coincidiu com o ano da grande seca de 1.915. A empresa instalou depósitos no Rio, Recife, Paraíba e Fortaleza. As primeiras exportações para a Argentina, Chile e países da área andina datam de 1.916 quando foi colocado no exterior dois mil contos de réis em mercadorias. Nesse tempo o complexo constituído pela Companhia Agrofabril e pela Iona & Companhia empregava 3.500 pessoas.
Tudo isso ganha um sentido especial se comparado com a pobreza brutal do sertão nordestino daquele tempo, território onde um povo admirável tentava sobreviver. Sertão onde vigoravam as oligarquias reacionárias e estúpidas, responsáveis, muito mais que a seca, pela miséria sem fim das populações. Às vésperas de sua morte, Delmiro Gouveia recebeu uma proposta milionária da Machine Cotton, que vinha insistindo na compra da sua fábrica de linhas. Havia encomendado um projeto de uma fábrica de tecidos com dois mil teares e tinha começado a preparar dois mil trabalhadores especializados. Pouco antes de ser assassinado, afirmou aos amigos: "Primeiro me firmo nesta fábrica. Muita coisa vai vir em seguida. Levarei energia elétrica por este mundo afora. Irrigarei as terras, nosso sertão vai progredir. Abrirei estradas de rodagem acompanhando a rede de alta tensão por Alagoas, Pernambuco e estados vizinhos”.
No Nordeste se dizia que grande homem no sertão não havia quatro, só três: Lampião, na valentia; Padre Cícero, na grandeza de coração; e Delmiro, no trabalho. Na noite de 10 de outubro de 1.917, como era seu costume, Delmiro Gouveia sentara-se na sua cadeira de vime, no alpendre do chalé, debaixo de uma lâmpada elétrica forte que iluminava sua figura vestida de branco. Abriu os jornais para ler as notícias. Eram 21 horas. Por entre as plantas do jardim se esgueiraram três "cabras" armados de rifle. Apontaram: um tiro pegou num braço, um se perdeu, o outro feriu Delmiro no coração. Toda a cidade de Pedra acordou. Cem armas de fogo foram passadas às mãos dos trabalhadores que partiram em todas as direções, chorando pelas estradas.
No velório desfilaram as operárias das seções de fiação, os mecânicos, os maquinistas, os carregadores, lojistas, caixeiros, crianças, pequenos agricultores, vaqueiros vestidos do couro que chegavam de longe. Era uma espécie de culpa coletiva:- Se facilitava tanto, era porque confiava no seu povo. Ao pé do caixão, um velho trabalhador da seção das cardas repetia:- Atiraram nele para matar a fábrica também. Algumas semanas depois, foram presos, do lado oposto do São Francisco, os pistoleiros José Inácio Pio, João Róseo de Morais e Antônio Felix.
A confissão arrancada debaixo de tortura não tem a menor garantia da verdade. Quem mandou matar? Surgiram várias hipóteses, mas o processo, falho, jamais convenceu a qualquer jurista que o tenha estudado. E não convenceu também ao povo, que sabe perguntar como no Direito Romano - qui podest? - a quem interessa? E a resposta é uma só: ao truste da Machine Cotton, encabeçado por J. P. Coats & Company e tendo como subsidiárias a Clark & Company, a Ross & Duncan e a Companhia Brasileira de linhas para coser, sediada em São Paulo.

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