quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Recordações de Uma Indústria Morta

Graciliano Ramos (*)

Arte: Graciliano (Cândido Portinari)

Era uma vez um sertanejo que se chamava Gouveia e se mantinha comprando peles de bode na caatinga, vendendo-as em povoações do interior, em dias de feira. Negócio difícil. Os armazenistas fixam peso mínimo para a mercadoria aproveitável: o que fica abaixo é refugo. Em conseqüência os matutos se defendem derramando chumbo miúdo nas orelhas murchas das peles, tapando os buracos depois com cera.
O nosso pequeno comprador aperfeiçoou-se nesse truque, imaginou outros, conheceu todos os segredos do ofício, adquiriu tanta habilidade que poderia, segundo afirmavam os tabaréus, esfolar uma cabra viva sem que ela percebesse que estava sendo esfolada.
O êxito vertiginoso do homem justificou a malícia cabocla. Saiu da capoeira, estabeleceu-se na cidade, passou a infligir a criadores e intermediários as regras a que se havia sujeitado em tempos duros. Cresceu rapidamente, engrossou demais. E como, no dizer dos roceiros, a água corre para os rios e daí para o mar, tornou-se rio, foi desaguar na capital, onde se espraiou em excesso e virou mar.
No comércio de exportação, Gouveia fez diversas viagens à Europa, hospedou-se em hotéis de luxo, fingiu extasiar-se na ópera e conseguiu arranhar duas ou três línguas necessárias ao débito e ao crédito.
A fortuna repentina lhe proporcionou inimigos fortes. Os colegas apertaram-no, a política interveio na briga, interesses públicos relacionaram-se com melindres de família. Gouveia desacatou um cidadão poderoso e fugiu, largando bens aos credores que tiveram prejuízo de mais de noventa por cento.
Absolutamente pelado, foi plantar-se no sertão, pelado também, no lugar mais triste do mundo, ermo que só dava cascalho e espinho, e planejou aí uma indústria audaz, quase impossível, por lhe faltar capital e ter o nome estragado na liquidações horrível. O conhecimento das línguas e o domínio que exercia sobre as vontades alheias forneceram-lhe os recursos indispensáveis. Associou-se a um carcamano e a um gringo, com esses dois testas-de-ferro organizou a razão social, importou maquinismo, chamou técnicos e iniciou a fabricação num ambiente de clara desconfiança. Na verdade, o produto dele, nacional e cambembe, se distanciava do que vinha nos porões dos transatlânticos, bem empacotado, bem rotulado, com larga fama entre os consumidores, resistente e “made in England”. Mas isso foi no princípio. Endireitou-se, levantou a cabeça e em poucos anos entrou violentamente no mercado,, oferecendo-se por preço baixo, alarmando o intruso considerável, “trade mark”. O carrascal, fértil em seixos, mandacaru, xiquexique, transformou-se em jardim e pomar, com água farta chegada em tubos do rio próximo. E numa cachoeira notável, mencionada sempre com respeito, admiração e inércia, turbinas foram acordar alguns cavalos da manada que lá dormia o sono dos séculos.
A metade nórdica da firma, toda escrita em consoantes, permaneceu longe, na civilização, embolsando os lucros, áspera, fechada, invisível. A parte meridional, compostas de vogais e maleável, foi arrastada porá o local da exploração, onde Gouveia a torturava, a manejava despoticamente e, simulando escorar-se na moleza e nos arrepios dela, estirava pelos arredores uma autoridade sem limites.
Arame farpado cercava a fábrica e vila operária. E os agentes do governo, funcionários da prefeitura, soldados de polícia, detinham-se nas cancelas, porque lá dentro não eram precisos. Estava tudo em ordem, ordem até excessiva, as casas abrindo-se e fechando-se no horário, os deveres conjugais observados com rigor, o cinema exibindo fitas piedosas, as escolas arrumando nas crianças noções convenientes. Apito de manhã, apito ao cair da noite, instrumentos e pessoas em roda viva, tudo melhorando, a procura superior à oferta. Definitivamente escorraçada a mercadoria “trade mark”.
Nesse ponto surgiram alguns sujeitos louros, de chapéu alto e fala emperrada, meteram-se num automóvel, mergulharam no sertão, dirigiram-se a Gouveia e pretenderam, com salamaleques e razões várias, apoderar-se da fábrica. Não se combinaram. Gouveia respondeu em quatro línguas – na dele, na dos visitantes, nas dos sócios – que a transação era inexeqüível. Os tipos louros acenderam os cachimbos e disseram:
-
Ya. Bene. Al rigth. Pois não.
Em seguida voltaram à carga, ofereceram soma exorbitante. Nada obtendo, acomodaram-se no automóvel, sumiram-se e regressaram ao cabo de uma semana, agregados a cavalheiros sutis que se interessavam no arranjo por patriotismo. Receberam friamente a recusa do carcamano silencioso e do gringo invisível e abstrato. E despediram-se:
-
Good bye. Arrivederci.
Mas não se reviram. Algum tempo depois Gouveia recebeu um tiro de emboscada, no coração. Fez-se o enterro, declamou-se o discurso fúnebre e expediram-se os telegramas necessários, publicou-se a notícia nos jornais, rezou-se a missa de sétimo dia, realizou-se o inventário e prenderam-se dois cabras de somenos valia. Um tentou fugir e morreu. O outro foi indultado e penetrou no funcionalismo. Um profundo esquecimento cobriu Gouveia, amortalhou a indústria aparecida com audácia no sertão, entre imburanas e coroas-de-frade. Certa companhia estrangeira apossou-se das máquinas, rebentou-as, jogou-as no rio. E os cavalos, desperto por Gouveia, adormeceram de novo na cocheira magnífica, celebrada em prosa, imortalizada em verso, apontada com orgulho, sinal de nossa grandeza.
(In “Viventes das Alagoas” – Martins Editora – 1954)

(*) Escritor e político brasileiro, nasceu em 27.10.1892, em Quebrangulo (AL) e morreu em 20.03.1953 no Rio de Janeiro (RJ).

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